Um coração simples

Flaubert desloca o interesse para a interioridade mais profunda da personagem — e isso é capaz de vitalizar todo o texto
Gustave Flaubert, autor de “Um coração simples”
01/03/2024

1.
Quase sempre acontece que um grande autor, consagrado nos quatro cantos do mundo, tenha as assim chamadas “obras menores”, isto é, sem a relevância das outras; são pouco lidas, pouco citadas, e isso se deve, em parte, às suas pequenas dimensões, que podem induzir à menoridade de seu conteúdo: e aí temos de exemplo, dentre outras, em A fera na selva, de Henry James, Bartleby, o escriturário, de Herman Melville, O velho e o mar, de Hemingway e A morte em Veneza, de Thomas Mann. Muitos críticos assinalam que, às vezes, essas pequenas ficções são as obras-primas de seus respectivos autores — assim penso em relação a A fera na selva. Palpites à parte, vamos falar de Um coração simples [ou Um coração singelo, segundo outra tradução], de Gustave Flaubert, o imenso autor de Madame Bovary.

2.
Esse coração simples pertenceu a uma empregada doméstica do interior rural da França, chamada Félicité [Felicidade]. A época é a metade do século 19. Tudo sugere uma série de lugares-comuns sociológicos e da história dos costumes: maus-tratos, trabalho exaustivo e sem horário, submissão, revolta interna que não pode se expressar ou, se essa revolta acontece, é uma vez só, e acaba com o assassinato dos patrões. Isso aconteceu, e muito, na sociedade brasileira escravocrata. A vitimização permanente e passiva da personagem, contudo, não gera conflito e, portanto, não resulta numa obra literária. Sucede que, agora, estamos perante um ficcionista que sabe o que deseja, e que desloca o interesse para a interioridade mais profunda da personagem — e isso é capaz de vitalizar todo o texto. Os episódios, por poucos e triviais, são apenas o meio pelo qual conhecemos aquilo que importa em Félicité, e daí se repete uma consideração: o que realmente vale, numa ficção, o que de fato empolga um enredo, é a personagem, não pelo que ela é externamente, mas por sua questão essencial, a que o leitor terá acesso por pequenos gestos e meias-palavras, as quais vêm a constituir uma teia em que tudo faz sentido.

3.
O coração simples de Félicité é um dos corações mais complexos da literatura francesa. Não porque tenha contradições, que isso é coisa banal, e contradições, por si mesmas, não instituem nem complexidade nem originalidade. O grande feito de Flaubert foi criar um poderoso conflito sem que Félicité se contradiga, operando apenas o universo de sua alma que, sendo simples, nos mantém no contínuo sobressalto do enigma — aqui, Flaubert usa de um recurso literário que muito raramente falha: faz com que o leitor saiba mais do que a personagem; nós, leitores, sabendo mais do que ela as razões íntimas de Félicité, acompanhamos a sua precipitação num vórtice sem retorno, e então, mágica da técnica flaubertiana, nada podemos fazer contra isso, e seguimos em agonia sua caminhada para a loucura e a morte.

4.
Não se pode pedir de Flaubert conhecimentos psicanalíticos — bom que seja assim: atualmente grande parte dos escritores insiste em psicanalisar suas personagens, remetendo à infância, ao pai abusador, à mãe bêbada etc., levando à superfluidade e a uma chatice sem tamanho. Já Flaubert colhe Félicité em plena ação, e em duas páginas ela já é empregada doméstica da viúva Aubin; sua infância não é mais do que um curto parágrafo, para mostrar como ela era pobre; uma breve e anterior ligação amorosa surge e fracassa em uma página. Basta isso. Clément Rosset nos diz que Harpagon já entra em cena como avarento, sem que se explique as causas de sua avareza, pois o que importa é que seja “o avarento” da célebre comédia de Molière. Félicité, desse modo, possui, como algo preexistente, um coração simples, e suas ações são destinadas a reforçar essa simplicidade, mas nas entrelinhas, e porque não somos bobos, Flaubert nos conduz pelos dédalos de sua alma, levando ao conhecimento da vertigem de sentimentos que dizem tudo ao contrário do que ela aparenta.

5.
O que está dentro dessa simplicidade é um ser humano que oculta, como mais candente, uma aniquilante ausência de realização amorosa, e isso surge no subtexto de alguns episódios, dos quais releva uma sensibilidade arrasadora, o que se vê na cena da primeira comunhão da filha de sua patroa:

Ao chegar a vez de Virgínia, Félicité inclinou-se para vê-la; e com a imaginação que brota das emoções verdadeiras, pareceu-lhe ser ela mesma aquela criança; seu semblante se tornava o de Félicité, seu vestido a vestia, seu coração batia no peito dela; no momento de abrir a boca, cerrando as pálpebras, quase desmaiou.

Temos aqui um pendant com o arrepiante arrebatamento erótico observado na famosa escultura de Bernini, do Vaticano, e que representa o êxtase de Santa Tereza de Ávila — obra que Flaubert bem conhecia.

6.
Há outro momento que reforça a dramática pluralidade interna de Félicité, e que encontra seu epicentro na repressão sexual. É quando ela desenvolve uma extemporânea ligação com seu sobrinho, um rapaz que “chegava todos os domingos, depois da missa, de faces rosadas, o peito nu, e exalando o odor do campo que atravessara”. A partir daí surge a paixão unilateral de Félicité, desencadeando uma sucessão de eventos que conduz a um final dos mais impressionantes de toda literatura, sem a força arrasadora do final de A fera na selva, em que John Marcher morre de uma brutal síncope sobre o túmulo de May Bartram. Já o encerramento de Um coração simples vem recheado de uma enternecedora paz, repleta de um bucolismo que nunca, mas nunca, sai da cabeça do leitor. E é quando, in extremis, ela ainda vive êxtase de seu erotismo: “Um vapor celeste subiu ao quarto de Félicité. Ela dilatou as narinas, sorvendo-o com uma sensualidade mística”.

7.
O último terço da novela — Flaubert chamava-a de conto — nos reserva algo extraordinário, que vem a quebrar uma possível previsibilidade. No enredo, há um arco arrebatador que une a paixão pelo sobrinho ao seu desaparecimento num remoto lugar transoceânico, situado nos trópicos ao Sul. Então, o extraordinário: quando tudo nos diz que a história estaria próxima de terminar — bastaria “emendar” com a cena final e já teríamos uma grande obra —, Flaubert põe em cena um papagaio, que sincretiza todos os elementos da narrativa e ganha a força do símbolo de toda a paixão recolhida daquela que acabaria por ser sua dona. Papagaios são aves tropicais, e então passa a funcionar como chave daquele amor nunca recuperado e, ainda, de tudo que Félicité não conseguiu viver como expressão de sua intensa e sufocada volúpia.

8.
Flaubert, em Um coração simples, antes de Charcot, guiando-nos apenas pela ficção, mostra-nos o quanto as repressões não resultam em nada bom, podendo levar à insanidade. Foi ele quem, já sob as luzes do Realismo, desfez os mistérios que estavam presentes em todas as casas, e eram causa de intenso e brutal sofrimento. Ele é, assim, um predecessor, e através do seu único instrumento: a escrita, o que evoca a célebre carta de Freud ao escritor Arthur Schnitzler: “O senhor sabe por intuição — é verdade que devido a uma aguda observação de si mesmo — tudo o que descobri depois de fatigantes trabalhos com os outros homens”. Por esse caráter avançado e pela construção exemplar dessa personagem plena de consistência humana e ficcional, Um coração simples vai, com honra, para a nossa mochila.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

Rascunho