1.
Se a criação do universo é narrada pelo autor da Vulgata em apenas 500 palavras, não será pretensão deste colunista comentar o Ulisses em 1.000 palavras. Tópicos relevantes ficarão de fora, talvez mais relevantes dos que aqui são tratados. Mas, enfim, são escolhas. Para logo começar: não cabe, aqui, desvendar o véu do paradoxo do livro “mais famoso e menos lido do mundo”. Temos de nos aproximar de Ulisses como seus primeiros leitores, sem toda a montanha crítica que o acompanha, recuperando, assim, alguma coisa de sua genuinidade originária. Tarefa difícil, claro, porque o leitor brasileiro e eventualmente desconhecedor dos meandros linguísticos do “inglês de Joyce” terá de valer-se de traduções. Então, a tradução mais referida é a de Antônio Houaiss, de quem se dizia a brincadeira de que era o único brasileiro a ler o Ulisses por inteiro. Sim, escolho ler a tradução de Houaiss, que conseguiu verter para nossa língua, com sucesso, as criações — às vezes sem razão visível, exceto o mero jogo — do seu autor. Soam bem e fazem sentido para nós. Quem estranharia, por exemplo, as palavras umbilicordão, ou mundifamoso, inventadas por Houaiss, à Guimarães Rosa? Ou este delicioso olhifendas, referindo-se às pupilas de um gato?
2.
Para já, temos de nos eximir do complexo de ignorância se não entendermos “tudo”. Esse “tudo” é impossível, e não falo apenas nos aspectos textuais, mas, também, de conteúdo. É possível chegar até o fim? Sim, é, desde que venhamos a assumir aquela atitude do atleta numa pista de obstáculos. Os obstáculos devem ser saltados, como faz qualquer corredor que almeja atingir a meta. Se algum obstáculo tombar, deixemos ele lá atrás e vamos em frente. Uma experiência tão curiosa como compensadora.
3.
A recomendação, nessa primeira leitura, é a de esquecer que a obra se estrutura a partir da Odisseia; Ulisses transcorre num dia só, e no decorrer desse dia, inspira-se vagamente nalgumas passagens da epopeia de Homero. O leitor, depois, e se tiver a necessária paciência e conhecimento, poderá conferir isso em pormenor, e logo terá o prazer de excitantes descobertas, mas experimentará, em paralelo, alguns desapontamentos que devem, também, ser ultrapassados.
4.
A caminhada de Leopold Bloom [e não só dele] por vários espaços de Dublin pode ser considerada uma alegoria da Odisseia, sim, mas antes de tudo é uma enciclopédia narrativa do espírito do tempo da capital de um país dramaticamente conservador [mas com subterrâneas transgressões, católico, apostólico e romano, e para isso colaboram as várias referências a textos sagrados da Igreja, rituais canônicos, músicas sacras — uma delas com a partitura]. Vistas no seu conjunto, podem ser consideradas a desforra de um autor que viveu com intensidade o clima opressivo de uma sociedade com uma moral que só encontrava sua razão de ser se fosse ancorada no divino. É preciso alertar para esse ponto: sem um razoável conhecimento do universo paroquial e freirático, muitas barreiras ficarão no solo, mas nada que impeça alcançar a meta.
5.
Impressiona o contraste harmonioso entre a minúcia e o grandiloquente, tal como acontece com a Odisseia — e não só, mas, também, na Ilíada, na Eneida ou em Os lusíadas. Isso é notável mérito de Joyce que, depois de obras “alinhadas”, cujos enredos dão-se num universo “humano” e “habitual”, resolve aventurar-se em experiências em que esses dois planos se alternam numa espécie de vertigem. Assim, temos descrições gastronômicas pungentes, como “Leopold Bloom comia com gosto os órgãos internos de quadrúpedes e aves. Apreciava sopa de miúdos de aves, moelas amendoadas, um coração assado recheado, fatias de fígado empanadas fritas, ovas de bacalhoas fritas. Mais do que tudo, gostava de rins de carneiro grelhados, que davam ao seu palato um delicado sabor de tenuamente aromatizada urina”. Contrastando com essa crueza, bem pouco antes, a personagem Stephen Dedalus teve uma filigranada reflexão metafísica: “Vê agora. Aí todo o tempo sem ti: e sempre o será, o mundo sem fim”. Aí está: o bom ficcionista consegue escrever em diversos níveis de sensibilidade, sem deixar perplexo o leitor.
6.
O sexo — a mais praticada forma de transgressão — não só está presente, como pode ser considerado o motor de Leopold Bloom e de outras personagens, como a esposa Molly; o sexo ele se apresenta como um persistente e picante cantochão — assim, pior do que plenamente explícito, ele pulsa nas entrelinhas das falas e no miúdo dos gestos, das sensações e pensamentos. No monólogo final, entretanto, como o estourar de uma represa é Molly Bloom que assume escancaradamente aquilo que os outros diziam dela, um discurso escatológico, deliberadamente obsceno:
[…] eu vou pôr a minha melhor combinação e calças deixando ele dar uma olhada pra fazer o pirulito dele ficar em pé eu vou deixar ele saber se é isso que ele queria que a mulher dele foi fodida sim diabo bem fodida mesmo até quase o pescoço não por ele cinco ou seis vezes sem desgrudar[…]
7.
Este texto já centenário apresenta inovações formais de toda ordem; talvez não os vertiginosos monólogos interiores que lá sem encontram, visto que esta técnica já aparece 35 anos antes, em A canção dos loureiros, de Édouard Dujardin, mas, de certeza, são vertiginosas as alterações de focalização [inclusivamente dentro do mesmo período gramatical], os diferentes estilos que assume, os gaps atordoantes das sequência narrativas, as variações de tempos verbais. Tudo, de certeza, perturbou seus primeiros leitores e os empolgou, em especial os críticos dos Estados Unidos, os primeiros entusiastas, mas que hoje, vistas em perspectiva, soam algo ingênuas, dado que, depois de Joyce, inventou-se de tudo, até livro com as páginas em branco.
8.
À parte essas inovações, algumas perto do jogo de palavras e, digo eu, até dispensáveis, pois a obra sobrevive sem elas e a despeito delas, o dado mais relevante é que Ulisses libertou as últimas cadeias da língua literária, mostrando que um texto não é intocável em sua pseudossacralidade, e que as palavras estão, sem regras, ao dispor do ficcionista. Claro, assumiu o preço de arriscar-se e, por enquanto, ganhou a aposta: a atual geração está algo saturada da onipresença pantagruélica de Ulisses, e será preciso que esta passe para que nova geração possa entender o romance dentro de outros parâmetros conceituais e críticos e, por que não dizer, de mudança de gosto do público e das universidades.
9.
O mais importante, neste momento, é destacar que Joyce mostrou como um simples dia na vida de um homem banal, com seus altos e baixos, com seus momentos sublimes e seus momentos sórdidos, é capaz de nos colocar no vórtice de um buraco negro em que tudo está contido — toda a matéria humana aí incluída. E isso não é pouco e, assim, vai para a mochila.