Pensamentos

"Pensamentos" é uma espécie de um scrapbook de anotações esparsas que antecipam a base do existencialismo
Ilustração: Blaise Pascal por Henry Hoppner Meyer
01/05/2023

1.
Os chamados “filósofos da existência” constituem uma legião, e nos dizem uma coisa só, embora as variantes conceituais e a época em que escrevem: o ser humano, para além da metafísica, deve ser o principal foco de atenção. Uma ideia simples, mas de repercussão que ultrapassa a filosofia, atingindo as artes e, em especial, a literatura.

2.
Peço desculpas pela platitude do parágrafo acima, mas preciso assentar esse conceito para enunciar que Blaise Pascal é um autor que se insere nessa imensa corrente que privilegia tal pensamento, e estamos falando de algo que começou bem antes, antes mesmo de Agostinho de Hipona, ao qual já dedicamos uma coluna. Mas então: Pascal é um homem do século 17, e depois de livrar-se das visões dicotômicas do jansenismo, partiu para uma melhor compreensão da essência do ser humano como um ente de razão e coração — sentimento, diríamos hoje. É o mesmo Pascal que diz, afrontando o pensamento cartesiano, que conhecemos a verdade não apenas pelo uso da razão, mas também pelo coração. Foi capaz de sintetizar isso na sua frase mais conhecida e banalizada nas redes sociais: “O coração tem razões que a razão desconhece”. Bem, aqui já temos algo de novo naquele contexto e, diríamos, na história da cultura.

3.
Pensamentos é uma espécie de um scrapbook de anotações esparsas que foram mais ou menos organizadas pela irmã após a morte de Blaise e assim publicadas. Algumas notas foram descobertas, inclusive, costuradas no interior do forro da roupa do filósofo. Tudo isso nos permite o frescor da provisoriedade e autenticidade, tornando Pensamentos uma leitura bem ao gosto de nossa época que vive de fragmentos e ideias incompletas, e, na mesma medida, valoriza o presente: e vejam o que diz Pascal:

Que cada um examine o seu pensamento, e o encontrará sempre ocupado com o passado e o futuro. Quase não pensamos no presente e, quando nele pensamos, é para tirar dele a luz para pensar o futuro. O presente nunca é nosso fim. Assim, não vivemos nunca e, sim, esperamos viver.

Sem dúvida, uma ideia bizarra em sua época, na qual o tempo presente era um estágio de lágrimas para que se alcançasse, depois, a bem-aventurança eterna. Eis mais um diferencial de nosso autor.

4.
Outra de suas preocupações expressa-se na afirmativa de que a coisa mais importante para a vida é a escolha da profissão, e, quanto a isso, é o acaso que irá determinar qual seja essa profissão. Não se pense, contudo que ele está a falar apenas em ofícios práticos, mas vai muito além, levando a uma consequência de natureza existencial, a qual se expressa por algumas sentenças plenas de conhecimento do problema: “Nada é tão insuportável ao homem como estar em pleno repouso, sem paixão, sem ocupação, sem diversão, sem aplicação a alguma coisa”. Numa redução, Pascal então afirma que esse homem sentirá seu nada. O que lhe sobrará será o aborrecimento, a melancolia, a tristeza, a aflição, o desespero. Estamos, com todas as letras, imersos no pensamento moderno: o existencialismo dirá a mesma coisa. Na ausência de um ser metafísico [no caso, Deus] que daria à vida um sentido transcendental, o homem é jogado perante o nada, e o sem-sentido do nada só encontrará repouso quando, determinadamente ou por casualidade, assumirmos um empreendimento individual, como escrever um livro, construir uma casa ou dedicarmo-nos a uma causa social ou à arte. [Freud incluirá a arte como um dos derivativos da neurose]. Podemos concluir: o moderno pensamento ocidental chega, por outras vias e outras origens, ao mesmo ponto de Pascal. Se Pascal nos diz que a natureza abomina o vazio [o famoso horror vacui aristotélico] assim o homem moderno fugirá do seu vazio, que corresponderia à imposta e completa ausência de sentido da vida. Por isso, esta necessita ser preenchida.

5.
Se tudo é assim, a literatura é seu reflexo: no período do existencialismo hard, tivemos aí obras já canônicas, tais como O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, A náusea, de Jean Paul Sartre, O estrangeiro, de Albert Camus, A hora da estrela, de Clarice Lispector. Todas nos convidam a pensar no absurdo da existência e na circunstância de que individualidade é sempre uma construção. O “não se nasce mulher, torna-se mulher”, proposto por Simone de Beauvoir, de largo e combativo uso, vale também para qualquer gênero, mudando os termos. Antoine Roquentin, de A náusea, chega à lucidez da indeterminação a priori do que somos:

Todavia, sei muito bem que existo, que eu estou aqui. Quando agora digo “eu”, parece-me oca essa palavra. Já não chego lá muito bem a sentir-me, a tal ponto me esqueceram. Tudo quanto resta de real em mim é existência que se sente existir.

Ou Simone de Beauvoir, num diálogo do seu romance acima citado:

— Agora — prosseguiu Françoise — estou tranquila; cheguei à conclusão de que, vá para onde for, o resto do mundo desloca-se comigo. É essa ideia que evita que eu sinta qualquer pena. — Pena de quê? — perguntou Gerbert. — De morar apenas na minha pele, enquanto o mundo é tão vasto.

Colando ao pensamento de Pascal, há a personagem central de O estrangeiro, logo depois de ter cometido um assassinato, na audiência, se ele crê em Deus. Ante a negativa, o juiz se enfurece: “— Quer dizer que minha vida não tem sentido?”. Em outras palavras, o juiz falava no nada que seria sua vida caso não tivesse nada que a preenchesse de significado. Mas não precisamos ir tão distante no tempo e na cultura: basta pensar na Clarice Lispector de Água viva:

À duração de minha existência dou uma significação oculta que me ultrapassa. Sou um ser concomitante: reúno em mim o tempo passado, o presente e o futuro, o tempo que lateja no tique-taque dos relógios.

6.
Por razões de espaço, concentrei em poucos e exemplares autores a detecção das preocupações pascalianas; mas elas atravessem toda a história da literatura, de uma forma ou de outra e, em alguns casos, pouco perceptíveis — mas ali estão, nas entrelinhas. Isso significa, ao fim de tudo, que nossa existência é um barco inseguro e frágil, em que a presença do nada nos assombra a cada esquina. Os escritores já descobriram que a melhor forma de evitar esse círculo infernal é justamente falar nele; enquanto falamos no nada, esquecemos a morte, ressoando mais uma frase de Pascal: “A morte é mais fácil de suportar sem pensar-se nela”. Por toda essa última reflexão e atualidade de toda obra, Pensamentos vai para a mochila.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

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