1.
Virginia Woolf é como Clarice Lispector: toda obra é relevante e, portanto, qualquer livro de ambas pode ser considerado sua obra-prima. Escolher Viagem ao farol ou Mrs. Dalloway ou Orlando é indiferente. Assim, vou pelo gosto pessoal, Orlando; para efeito desta coluna, interessam-me, nesse romance, dois aspectos; um, acerca da personagem, e outro referente à escrita do tempo, sempre à busca do quid mais importante para quem escreve ou deseja escrever e que, ao mesmo tempo, e em igual medida, traga proveito ao leitor habitual.
2.
Excluo aqui qualquer referência à biografia do autor — no caso, da autora, mesmo sabendo que Orlando é um nítido e picante roman à clef —, bem como uma contextualização de época. Esses aspectos podem ser interessantes para o acadêmico e para o voyeur, e aqui não se trata de nenhum dos casos. Então, retomo algo da intenção cara aos estruturalistas, que visa entender a obra literária mediante critérios intrínsecos, a que acrescento os comparativos, mas não os históricos, ideológicos, estudos de gênero, sociológicos etc. Abro apenas um pequeno parêntese para sugerir que Virginia Woolf talvez tenha usado uma evidente fonte de inspiração: o espantoso e interessantíssimo transgênero Chevalier d’Éon [1728-1810] longevo, espião, diplomata e aristocrata, e que, como Orlando, mantinha tanto um guarda-roupa masculino como um feminino.
3.
Para já, anote-se, de Orlando, seu intenso sentido de humor, aquele que escorre de uma pena desembaraçada. Há vários momentos de riso frouxo. Causa-me pena ler análises longas e sisudas [e datadíssimas] a respeito da mutação do gênero de Orlando, mas Orlando, o romance, trata o tema com leveza, quase brejeirice, como se vê no diálogo que Orlando-mulher trava com seu marido, que faz lembrar o bricabraque das comédias do gaúcho Qorpo-Santo: “Você é mulher, Shel!” ela exclamou. “Você é homem, Orlando!” ele exclamou.
4.
E vejamos, que já é tarde, os dois aspectos anunciados: a) a personagem-título é consistente, seja homem, seja mulher e, b) transita com desenvoltura pelo tempo, começando na Inglaterra isabelina e terminando no século 20. Essa conjunção de originalidades torna essa obra rigorosamente única.
5.
Em ambos os casos, e isso é o que importa, constituem-se em personagens que nos convencem. Orlando-homem é a versão britânica de Gonçalo Mendes Ramires, de A ilustre casa de Ramires, castelão, blasé, rico, literato, entediado às vezes, quase sempre desastrado e inevitavelmente à busca do que lhe dê qualquer sentido à vida. Orlando nunca está no lugar certo, e ao apaixonado brilho da juventude sucede o mal-estar com a vida, inclusivamente com sua propriedade ancestral, com longos e espectrais salões.
6.
Orlando-mulher surge em Constantinopla, em meio a uma comoção bélica, cheia de sons de tambores e de metais. A transição é narrada em poucas palavras: “Espreguiçou-se. Levantou-se. Ficou de pé diante de nós, sem roupa nenhuma, e, enquanto as trombetas rugiam Verdade! Verdade! Verdade!, não temos escolha senão confessar — era uma mulher”. Do ponto de vista literário — abstraio outras interpretações, reitero — nós nos convencemos desse fato pela naturalidade com que é contado, o que também acontece quando Orlando-ela se integra como mulher num grupo de ciganos, realizando tarefas femininas. Internamente, segue sendo homem, como escreve a própria autora, mas é mulher, numa refinada construção textual, o que só espanta os ciganos. Em outras palavras: homem e mulher Orlando são, internamente, a mesma coisa, exceto pela sexualidade abrasadora do homem e pela frieza erótica da mulher.
7.
O item mais bem conseguido de Orlando é o transcurso do tempo, e aí é insuperável, e não apenas por sua existência multissecular, dado que isso já fora proeza do Matusalém bíblico, mas pelo manejo desse tempo, em que a personagem transita pelas diferentes eras quase sempre a partir de sua dinâmica interior, a qual percebe e sente os momentos a partir de si própria, e assim não notamos a distância imensurável entre o minuto em que, efebo nobre e rico, Orlando recebe um beijo da rainha Elisabeth I, até quando, dirigindo um carro, se atasca no trânsito londrino, envolve-se num acidente burlesco, despista-se e acaba em sua antiga propriedade. Essa costura por vezes acontece através das percepções alheias, “Ninguém demonstrou a menor suspeita de que Orlando não fosse o Orlando que tinham conhecido”. Uma excelente aula de como o ficcionista pode preencher arcos temporais sem recorrer apenas às vulgares marcações dos relógios e dos calendários. E, ainda, porque a literatura é imperecível, Orlando conversa com poetas e narradores de diferentes gerações à medida que transcorre sua vida, e o leitor, assim, transita com simplicidade entre diferentes modas, inclusive as intelectuais. Isso permite que a personagem se dedique a escrever uma obra literária interminável — tal como Gonçalo — um poema a que chamou de “O carvalho”, iniciado no século 16 e a que se entrega a concluir no século 20. Nunca será demasiado atribuir a esse poema, sempre pendente, a função de uma forte argamassa a dar coesão às transições temporais da personagem, pois aparece a todo momento. Admirável também é a habilidade com que a autora nos poupa das longas digressões que ficcionistas amadores nos impingem. Orlando-mulher conhece aquele que será seu marido, numa cena em que estão a cavalo em direções opostas e há um sobressalto, um acidente: “‘Minha senhora’, disse o homem saltando do cavalo. ‘Está ferida’./ ‘Estou morta, meu senhor’, ela [Orlando] respondeu./ Alguns minutos depois tinham ficado noivos./ Na manhã seguinte, ao se sentarem para o café da manhã, ele declinou seu nome: Marmaduke Bonthrop Shelmerdine”. Honni soit qui mal y pense desse último sobrenome.
8.
Se ao contemporâneo de Virginia Woolf, o poeta Paul Valéry, repugnavam os episódios concretos, a ponto de dizer que jamais escreveria a corriqueira frase “a marquesa saiu às cinco horas”, a escolha narrativa de Virginia Woolf é adversa. O suceder dos episódios acentua e dramatiza a história, e é coadjuvante para transmitir a ideia da passagem do tempo. A própria autora, na figura do focalizador onisciente, é quem ensina a quem escreve: “Se a pessoa retratada numa biografia [Orlando é uma ficção biográfica] não ama nem mata, mas apenas pensa e devaneia, podemos concluir que não é muito melhor do que um cadáver, e tratamos de abandoná-la”. Desse modo, podemos entender Orlando como um romance de aventuras, em que a personagem central está sempre fazendo algo, e nesse moto contínuo não notamos o correr das eras e, por isso, somos levados ao século anterior a bordo desse tapete mágico que nos oferece a autora.
9.
Da maneira como nos é apresentado, sabemos que Orlando é personagem longevo, mas não imortal, mas por certo que Orlando, o romance, já conquistou essa última condição e, portanto, merece estar na nossa mochila.