1.
Não sei quanto aos leitores, mas tenho suficientes resistências às narrativas alegóricas para não as desfrutar como, talvez, mereçam. Razões estarão no subconsciente, mas tentando organizar melhor o pensamento, elas me desagradam por não estabelecerem, de imediato, uma conexão com o real, e dá trabalho ir atrás de um sentido que teima em desfazer-se quando dele estamos perto. E literatura não deve dar trabalho e, sim, prazer. Como está em Shakespeare, em A megera domada, o que não dá prazer não dá proveito.
2.
Tal é o caso de O visconde partido ao meio, de Italo Calvino, um autor que não apenas pertence ao cânone da literatura italiana, mas da própria literatura mundial. O prazer decorre da prosa limpa, sem truques, sem preocupações de criar armadilhas linguísticas a título de estilo; dir-se-ia: uma prosa clássica na melhor concepção do termo, o que o leitor agradece, pois lhe permite ingressar, aparentemente sem intermediários, na fabulação. Uma história simples: o visconde Medardo di Terralba vai à guerra e, numa batalha, um tiro de canhão o divide ao meio, dividindo, também, seus humores: com vida independente, uma parte representa apenas o mal e sai a fazer maldades; outra, o bem, e sai a fazer bondades.
3.
Essa foi uma ideia antiga na cabeça de Calvino que, numa entrevista, disse que, antes de tudo, queria escrever uma história divertida, para si e para os outros; impressionava-o, naquela altura, do quão incompletos estavam seus contemporâneos, pois ora agiam só com sua parte boa, ou só com a parte má. Do ponto de vista técnico, mostra-nos a importância do “pensar antes” (vá lá, planejar) o romance, e previu a composição de uma história simétrica, de aventura, mas também quase de dança entre a parte boa e a parte má. E o faz mediante uma argumentação impagável: se alguém gastou dinheiro comprando o livro e, depois, gastando seu tempo na leitura, deve divertir-se. “O divertimento é uma coisa séria”. Não por outra razão, quando lemos O visconde partido ao meio, nos lembramos de imediato do engraçado filme O exército Brancaleone, de Mario Monicelli, com Vittorio Gassman, talvez em seu melhor papel. Ambos são, naturalmente, calcados em D. Quixote de la Mancha, e todos se impondo como sátiras do período da Baixa Idade Média, com suas pestes, lutas contra os sarracenos, disputas entre senhores feudais e muita falta de dinheiro.
4.
A história é contada por seu escudeiro Curzio, que o acompanhou à guerra, e que descreve de maneira vivaz os acontecimentos da história. Nesse ponto, Calvino recupera a figura clássica do acompanhante da personagem central, encarregado de ser o porta-voz e divulgador das ações, tal como sucede com Horatio em relação ao jovem Hamlet, Dr. Watson em relação a Sherlock Holmes e, mais recentemente, Adso de Melk em relação ao monge William de Baskerville, em O nome da rosa, de Umberto Eco. Mais do que um recurso, é um estratagema técnico para quando o ficcionista necessita mostrar episódios não acessíveis à ciência/vivência da personagem central. Por exemplo: Horatio foi necessário para relatar a morte de Hamlet. Normalmente essa personagem acessória não é uma pessoa de muitas luzes intelectuais, e, portanto, desprovido de suficiente originalidade para fantasiar. Então: é confiável.
5.
Nesse papel, Curzio nos coloca em campo de batalha dos cristãos contra os sarracenos; que seu nobre tio, jovem e temerário, investe contra os canhões inimigos de frente (quando, pela tática militar e senso comum, deveria atacar pelos flancos ou pela retaguarda) e, claro, é atingido em cheio por um petardo. Os soldados que vieram fazer o rescaldo dos corpos descobrem a metade direita de Medardo (acharam essa metade íntegra, com um olho, uma perna, um braço, uma orelha, meio nariz, meia boca; da outra parte, apenas uma massa disforme). Os médicos conseguem salvar essa metade, a direita, sem saber que se tratava da parte má do Visconde. O Visconde (melhor, sua metade), a cavalo e, depois, sempre apoiado numa muleta, volta para Terralba e passa a fazer todas as maldades do mundo, como, com sua espada, dividir ao meio tudo o que encontra, vegetais ou animais. Sob a mais leve suspeita, mandava enforcar infratores menores. Logo nos convencemos da inviabilidade desse ser desumano —exceto quando se apaixona por uma camponesa, Pamela, não sem antes partir pela metade todas as flores cultivadas por ela.
6.
Apenas no último terço da obra (o que comprova que as cenas más são as mais picantes — vide o Inferno de A divina comédia, bem mais saboroso que o Purgatório e o Paraíso), surge a parte boa de Medardo de Terralba e, como tal, é a generosidade em pessoa, sacrificando-se pelos outros, devolvendo à água os peixes já pescados. Se o Visconde mau quebrava os ossos das aves voadoras, elas apareciam depois com as pernas enfaixadas e já voando. Quem se dá conta de que são duas pessoas, é Pamela: “Me dei conta de que o senhor é a outra metade. O Visconde que vive no castelo, o mau, é uma das metades. E o senhor é a outra metade, que se acreditava perdida na guerra e que agora retornou. E é a metade boa”. Esse é o começo da confusão na aldeia, porque surge um complicador: não apenas têm de conviver com essa dualidade, mas assistem as duas metades disputarem o amor de Pamela.
7. Claro, trata-se de uma alegoria, e, pensando bem, bastante ingênua, de fácil entendimento e previsível final. Mas atenção: estamos perante um escritor de alta gama, nada ingênuo, e se escreveu a novela, tinha em mente algo maior de que a dicotomia que existe dentro de nós. Somos divididos, somos bons e maus ao mesmo tempo, tal como Medardo de Terralba. Por aí terminaria a interpretação e estaríamos corretos, mas insatisfeitos: “deve haver algo mais”. E tem.
8.
O que ressalta, mais do que os aspectos cômicos, mais do que a dualidade burlesca, mais do que a representação da divisão entre o bem e o mal que existe dentro de nós, está no caráter irreconciliável de ambas as partes, a não ser que isso se extinga antes por uma espécie de mágica (é o caso do livro). Aí radica o subtexto mais profundo, social e político, e determinante de uma interpretação contemporânea de uma realidade que já começava no tempo de Calvino. Nosso mundo não procura soluções para os impasses, as partes não manifestam desejo recíproco de reconciliação, e é isso que nos leva para o caminho mais perigoso de todos os tempos. Uma obra que consegue dizer isso, varando um século, e vencendo minha implicância expressa no parágrafo 1, indico-a para ir para a nossa mochila.