1.
Um dos melhores textos do cânone literário da América Latina, o qual tem por tom certa grandiloquência social e histórica [García Márquez, Alejo Carpentier, Vargas Llosa, Roa Bastos, Juan Rulfo], é, entretanto, uma novela intimista, por vezes descuidada pela crítica e pelos leitores, escrita pelo argentino Ernesto Sabato ao início de sua carreira. Chama-se, apenas, O túnel. Na época [1948], teve aplaudida recepção por parte do público, foi elogiado por Thomas Mann e Albert Camus, mas seus títulos seguintes, notavelmente mais densos em sua perspectiva social, acabaram por amortecer o impacto dessa pequena joia de introspecção e horror.
2.
Já o título é ameaçador; a palavra túnel [o mesmo na língua espanhola] possui uma sonoridade obscura, com essa sinistra vogal fechada “u”, e, semanticamente, nos leva a uma ideia de subterrânea opressão, a um estado transitório, por certo, mas que evoca o desespero agônico em que procuramos alguma luz em seu fim. Tal é a novela de Sabato, em que a personagem central entra por um caminho que, ele sabe, irá levá-lo à tragédia.
3.
Já ao abrir a narrativa lemos isto: “Bastará dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou María Iribarne; suponho que o processo está na lembrança de todos, e que não são necessárias maiores explicações sobre a minha pessoa”. Mais uma vez, e prometo não tocar mais no assunto, se comprova que o melhor que há para quem deseja escrever ficção ou é um leitor letrado que busca entender os artifícios textuais, é saber previamente o final. Sabendo como termina, o leitor e o aspirante a ficcionista irão ler o enredo com participação ativa, para descobrir como o autor organizou seus meios expressivos na intenção de chegar ao fim já conhecido. E, com isso, aumenta seu repertório de conhecimentos da urdidura romanesca, renovando a alegria da descoberta. Saber é uma forma de prazer.
4.
Juan Pablo Castel, figura centralíssima e obsessiva da novela, dirige e faz acontecer todos os episódios; como narrativa do “eu radical” é impossível conceber qualquer ato que não seja buscado e fiscalizado por ele; comporta-se como um maníaco que, na moda linguística de hoje, seria chamado de controlador, psicopata, abusador e, por fim, feminicida. Como sabemos do final, aumenta o fascínio pelo desenvolvimento da história. O leitor, aqui, é uma espécie de entidade semelhante ao coro da dramaturgia grega ou à criançada num teatro infantil; sabendo mais do que Castel, queremos dizer que não faça besteira, que não vá ao encontro de María Iribarne, que não se embebede tanto nos priores momentos, que não seja fraco perante o que ele imagina que seja amor.
5.
María Iribarne é personagem que existe na cabeça de Castel, pelo menos, tal com passou a idealizar quando a enxergou numa exposição dele, e ela emitiu um comentário banal sobre um quadro. Uma idealização a que ele passou a somar qualidades que, em absoluto, sabemos quais sejam na verdade. Correspondendo a essa fantasia, e para que se forme o drama fatal, ela é bonita apenas o necessário — afinal, ele é um artista —, mas não só: possui uma sensualidade que só ele vê, revela uma cultura de almanaque, fala pouco e escreve mal, tem as relações masculinas suficientes para despertar ciúmes [inclusive regressivos], onde transparecem, com maior presença, o marido cego, um tio maluco que vive numa estância do pampa e uma legião de amantes pregressos ou contemporâneos. Nesse caldeirão de desregramentos morais é que Castel remexe a poção que o envenenará — não de maneira pausada, mas com a instantaneidade do cianeto de potássio. Nós, leitores de camarote, a partir de certo momento desistimos de aconselhá-lo: que faça o que quer; mesmo assim, nosso fascínio só aumenta, e essa María Iribarne, mesmo que não nos convençamos de sua existência, sequer literária, acabamos por vê-la na perspectiva de Castel, entendendo suas insanas articulações emocionais. Assim é que ela passa a existir.
6.
Não tendo com o que se ocupar, Castel faz a si mesmo perguntas: e se?… E se a resposta simples de María Iribarne estiver escondendo outro sentido, oculto? — ele então passa a escavar seu repertório de dúvidas, e sempre encontra uma resposta catastrófica — contra ele — assim reavivando o fogo do caldeirão e a quantidade de veneno. María Iribarne passa temporadas misteriosas na estância familiar [onde vive o tal tio] e pronto: vai para encontrar-se com o tio [não apenas maluco, mas sem qualquer resto de sexualidade] e, tendo essa suspeita, Castel pega um trem e aparece na estância sob pretexto de pintar um quadro, e para isso traz seu estojo de trabalho. Claro, tudo sai ao contrário, e ele retorna furioso para Buenos Aires.
7.
A partir dessa volta, tudo se agrava na cabeça de Castel, e aí surge mais uma pista das tantas que o autor vai dispersando pela novela: ele escreve uma carta insultuosa para Maria Iribarne, que segue na estância. Arrepende-se; vai aos correios para retirar a correspondência, o que lhe é negado, e isso é o suficiente para uma discussão patética e completamente desmesurada com a funcionária, assistida (e reclamada) pelos demais que estava na sala e, por fim, sai transtornado para casa. Em certo momento, vai ao porto, pega uma prostituta do Leste europeu e com ela tem uma briga de xingamentos sem fim, e, tivesse uma arma, por certo que tiraria a vida da infeliz. Percebe-se que está no limite de suas forças emocionais e é capaz de tudo. De tudo mesmo: inclusive de pegar um carro emprestado, ir até a estância e esfaquear Maria Iribarne de modo selvagem. Ela estava na cama. Sozinha.
8.
Ernesto Não pretendi realizar um resumo da obra, e evito fazê-las nas minhas colunas, pois o enredo se encontra em qualquer lugar da internet; no caso, tive de recuperar alguns dos episódios para mostrar a coerência com que O túnel foi escrito; Sabato entendia que a novela, diferente do romance, é uma estrutura com poucas personagens, com um único conflito e tudo que nela está tem um objetivo: o seu desfecho. E, suprema mestria, esse desfecho é anunciado na primeira frase. Realmente, merece estar em nossa mochila, junto a outras obras que nos encantam e que, terminada a leitura, temos vontade de retomar — ainda que saibamos tudo o que nela acontece.