1.
Em 1876 Eça de Queirós publicou com êxito O crime do padre Amaro, pedra de escândalo na sociedade constitucional e conservadora de Portugal. Mais do que pela qualidade literária, as pessoas se interessaram em lê-lo porque aquilo era novo, e picante: um padre que seduz uma moça, tem com ela um filho, que ele manda matar — e, espanto, dá-se muito bem. Estava preparado o terreno para estimular forte curiosidade pelo que sairia a seguir da pena do arrojado bacharel.
2.
Se em O crime do padre Amaro Eça voltou-se contra a hipocrisia da Igreja, em O primo Basílio, dois anos depois, o autor aparelhou sua metralhadora giratória contra toda sociedade portuguesa. Ninguém, ou nenhuma camada social se salva. A história, numa sinopse essencial, pode ser: uma jovem mulher, casada, sonhadora e impressionada por leituras água-com-açúcar, trai seu marido, é chantageada pela criada, o que traz à baila o conflito fidelidade x infidelidade, e, por fim, morre das culpas acumuladas. Quase igual a Madame Bovary, de Flaubert, saído 22 anos antes; a diferença está em que a morte de Emma Bovary decorre do fato de que não suporta mais a vergonha de ver-se assomada por dívidas impagáveis, enquanto Luísa tem seu fim hoje mais aceitável, pois radicado em sua psiquê mais profunda, conforme será visto no parágrafo 6.
3.
Optei por não levar adiante essa questão da influência de um sobre o outro — há pouco traria à baila a famigerada intertextualidade, que tanto e inutilmente triturou vários cérebros acadêmicos —, porque, dentre as centenas de ensaios dedicados ao assunto, não encontrei nenhum que desse uma resposta convincente; ademais, o que isso interfere na qualidade estética e humana da obra? Assim, optei por focar O primo Basílio em suas próprias circunstâncias literárias, mas, por método, usando o contraponto com as assertivas de Machado de Assis.
4.
Mas, então, o que diz o Machado? Preparem-se para imagens fortes. Antes de tudo, as bondades: o elogio a Eça, um autor que ele afirma que havia pouco saíra da “oficina literária” e que tem talento. Depois de algumas considerações sobre O crime do Padre Amaro, passa a dedicar-se a analisar a personagem Luísa, e fosse ela um monumento, não sobraria pedra sobre pedra, inclusive dos alicerces: “Repito, [Luísa] é um títere; não quero dizer que não tenha nervos e músculos; não tem mesmo outra coisa; não lhe peçam paixões nem remorsos; menos ainda consciência”. Isso atinge em cheio o defeito de concepção da personagem, o supremo insulto para um escritor. Mas vem algo mais acachapante: ao referir-se às artimanhas da empregada Juliana, destaca: “Se o autor, visto que o Realismo também inculca vocação social e apostólica, intentou dar no seu romance algum ensinamento ou demonstrar com ele alguma tese, força é confessar que o não conseguiu, a menos de supor que a tese ou ensinamento seja isto: — A boa escolha dos fâmulos é uma condição de paz no adultério”. O clássico e refinado humor machadiano, desta vez, desceu à rua da pancadaria.
5.
Para já, não se pode negar que o romance — seria mais bem nomeado como novela, embora isso também não importe — trabalha sabiamente com um número reduzido de personagens, foca no drama pessoal de Luísa e numa clara situação crítica, que vem a ser a cupidez da criada Juliana, que age como uma nêmese particular ao resgatar do lixo uma carta comprometedora para Basílio. Desencadeia-se a chantagem, que passa a ser pertinaz, doentia, obrigando a patroa, inclusive, a realizar as tarefas domésticas. Jorge, o marido, é ciumento, e a perigosa carta, vindo à luz, ocasionaria uma tragédia de sangue, tal como sucedeu na realidade ao nosso Euclides da Cunha. Essa espoleta, que levaria à díade conflitual acima referida, age como uma deusa tentacular, imobilizadora das ações de Luísa, a qual afunda no infortúnio.
6.
O que sobra, então, já que, como disse, é impossível ler Eça sem ler a feroz crítica machadiana? A solução é relativizar o autor brasileiro. Antes de tudo, O primo Basílio é um livro que se lê com prazer literário, pois tudo funciona como enredo. O curioso que o título escolhido não foi da personagem central, mas, sim, o do primo, mostrando que Eça queria deslocar, embora em vão, a atenção de Luísa, talvez para evitar comparações com Madame Bovary. Mas Basílio, escroque, dândi, obsceno, cínico e covarde, tem uma função de fascínio: o de repositório das ilusões de Luísa, logo desfeitas. Para se encontrarem, ele aluga um sórdido e exíguo apartamento, a que chama “o paraíso” — aí começa a desgraça geral. Luísa, se é para falar mal dela com os mesmos argumentos, que se diga o mesmo de Emma Bovary, que, entretanto, sai a salvo das generalizadas especulações críticas. É verdade que há um modus comum, certa fraqueza interior que as leva a sucumbirem: Emma, às dívidas; Luísa, à desilusão amorosa e ao abandono; a chantagem funciona apenas como uma explicação imediata do desespero que, ao fim de tudo, é apenas um gatilho da dor — e a prova está que, morta Juliana, a dor mortal permanece. Emma não procurou soluções, matou-se; Luísa não fez isso, mas a morte já tomava conta de sua alma desde quando subiu as escadinhas de “o paraíso”. Ela, apesar da mesma ilusão de Emma, das mesmas leituras de bricabraque, o exame de sua tragédia dá um passo a frente, no entendimento de que as pulsões internas podem ser determinantes de condutas e, neste caso, da própria morte. Emma Bovary, por exemplo, jamais seria capaz de dizer o mesmo que Luísa, quanto ao marido: “E depois era vil trair assim Jorge, tão bom, tão amoroso, vivendo todo para ela”. Ademais, conhecida a traição, Jorge não a mata, como era de esperar e sim, engolindo o ciúme e seus preconceitos, entende-a. Aí já vemos uma cultura diversa, e, a bem dizer, moderna. Não esqueçamos que no mesmo ano de 1878 publicava-se Daisy Miller, de Henry James, cuja figura central era exemplo de mulher no comando de sua vida. O Zeitgeist começava a mudar: Freud, nessa época, já estudava medicina, absorvendo todas as influências necessárias e, depois, faria estágio com Charcot.
7.
Sempre que posso, apresento a meus jovens alunos a crítica de Machado de Assis e, na discussão, surge o equívoco desse magistral autor em não entender que o acontecido em O primo Basílio foi a demonstração de que Eça estava noutro estágio intelectual, e assim, por ensinar-nos que a melhor originalidade é estar consoante seu tempo, e por entendermos que Luísa jamais seria uma Emma, O primo Basílio é mais uma obra que merece ir para a mochila.