O náufrago

"O náufrago” é uma espécie de summa do estilo e das preocupações do austríaco Thomas Bernhard
Thomas Bernhard, autor de “O náufrago”
01/04/2024

1.
Um cânone se firma quando as pessoas passam a considerar determinadas épocas ou autores como significativos e que podem ser lidos na segurança de uma boa recompensa de natureza estética, cultural ou humana. E mais: são obras que merecem ser guardadas na nossa estante ou numa nuvem da internet a fim de serem relidos e, que, no entanto, sempre apresentam descobertas. Aqui entra certa dose de subjetividade e de considerações geracionais. O austríaco Thomas Bernhard, por exemplo, pode ser considerado membro de certo cânone do século 20, século a que há pouco passamos a chamar, com certa estranheza, de “século passado”. Nesta coluna gostaria de tratar de sua obra capital — a meu juízo — titulada de O náufrago.

2.
Embora Bernhard tenha outras obras merecedoras de todo interesse, como, por exemplo, Extinção, O náufrago é uma espécie de summa do seu estilo e de suas preocupações. Quanto ao estilo, é um longo monólogo interior, mas não dessas imitações novidadeiras de monólogos interiores, em que não acontece nada, exceto as lamentações das personagens, como se isso interessasse ao leitor [a primeira pessoa, quando trabalhada amadoristicamente, leva a isso]. Sua técnica estilística mais usada era a repetição, quero dizer: as mesmas expressões são reiteradas com distâncias de poucas linhas e, no entanto, isso gera uma impressionante musicalidade. Já as preocupações de Bernhard são “austríacas”, quer dizer, a Áustria como seu locus privilegiado para ofender a todo momento seus contemporâneos, sua política, seus espaços geográficos e turísticos. As injúrias prediletas de Bernhard: repugnante, estúpido, horrível, hediondo, perverso, bobalhão. Claro, vinha o troco: por vezes era insultado na rua — quando reconhecido, porque sua vida era de um urso em eterna hibernação num lugar ignoto. Nem por isso deixam de homenageá-lo. Numa fachada lateral do Teatro Estadual de Salzburg — cidade que ele chamou de “a cidade mais hostil à arte e ao espírito que se pode imaginar, uma estúpida cidadezinha provinciana” — o visitante é surpreendido com uma bela placa de mármore em sua homenagem.

3.
Quando digo que sua preocupação era a Áustria, desejo ser entendido: a Áustria, para ele, era uma metonímia do gênero humano, que ele odiava tanto quanto seu país natal. Seu livro Extinção, uma derrocada é uma amostra disso: nada sobra de bom e de útil sobre a face da terra. O mais fascinante de tudo isso é como o leitor se apega a Bernhard. Seu fascínio gera uma legião de fanáticos por sua literatura. Minha explicação pode ser simples. Ele nos pega pelo estilo, sim, mas na mesma medida, pela intensa literariedade. Ao abrirmos qualquer livro de Bernhard, o leitor diz a si mesmo: nunca li nada igual. É essa singularidade originária a marca de qualquer grande obra artística — o resto são epígonos.

4.
Mas, então, do que trata O náufrago para ser tão interessante? O espaço é Salzburg, e o epicentro é a universalmente conhecida instituição denominada Mozarteum, que não apenas se dedica a preservar a memória de Wolfgang Amadeus Mozart, mas também é uma relevante escola superior de música, das mais importantes do mundo. Algo acontece, uma situação crítica poderosa; o narrador conta a história de seu amigo Wertheimer, apelidado de “o náufrago”, um ser que dedica a vida que lhe sobra a se autodestruir, física e emocionalmente, a partir do momento em que escuta três ou quatro compassos tocados ao piano por Glenn Gould, aluno, como ele e o narrador, do grande Horowitz:

Wertheimer estava entrando na sala destinada a Horowitz no primeiro andar do Mozarteum quando ouviu e viu Glenn tocando e ficou parado na porta, incapaz de sentar-se; Horowitz teve que instá-lo a sentar-se, mas ele não foi capaz de fazê-lo enquanto Glenn tocava; somente quando Glenn terminou é que ele se sentou; tinha os olhos fechados, posso vê-lo ainda com nitidez, pensei, e não falou mais nada. Dizendo-o de forma patética, foi o fim, o fim da carreira de Wertheimer como virtuose.

5.
Foi o fim de Wertheimer como virtuose, sim, mas também o fim de Wertheimer como ser humano. Sabendo que jamais poderia superar Glenn Gould, sequer igualar-se, sequer aproximar-se da excelência do pianista canadense que se notabilizou pelas reiteradas gravações das Variações Goldberg, de Johann Sebastian Bach, Wertheimer encontrou-se com o vazio da vida. Se é verdade o que diz o pensamento existencialista, que a vida não tem sentido, exceto o sentido que dermos a ela, Wertheimer passou a errar por outras distrações, como a filosofia e a escrita de um livro que possivelmente seria incompreensível até para ele mesmo. Deixou de tocar e leiloou seu piano Bösendorfer numa casa de objetos de segunda mão. Já o narrador, também desiludido por reconhecer-se sem talento [e isso que ambos já eram concertistas], doou seu caríssimo Steinway a uma menina igualmente sem talento que, ao martelar suas teclas, arruinou-o em pouco tempo.

6.
Como já visto, Wertheimer dedicou-se a um longo processo de aniquilar-se a si mesmo, mas nesse propósito arrastou outras pessoas, sua própria família, provocando estragos de toda ordem; mas não se pense que vandalizou a memória nem a admiração por Glenn Gould, como costuma acontecer quando há uma grande desilusão afetiva. Ele seguiu em sua admiração, acrescentando-lhe um viés quase religioso, e a cena final é inesquecível, pelo seu drama quase sobrenatural, e posso imaginar que Thomas Bernhard não escreveu esse fim como a coroação de sua novela, mas, coisa de escritor de gênio, escreveu sua novela em função desse fim.

7.
Muitos se perguntam por que Bernhard não recebeu o Nobel. Para mim, a causa foi ele mesmo, que, no livro Meus prêmios, enxovalhou seus colegas austríacos com os piores epítetos e desmoralizou os próprios prêmios: segundo ele, os ganhadores dos prêmios literários “são todos idiotas, uma lista inteira de idiotas”, assim como são idiotas os que decidem qual “idiota escrevinhador” ganhará o prêmio. “Essas pessoas”, sabemos nós, constituem o Senado Cultural da Áustria, uma instituição “cheia de idiotas… Idiotas católicos e nacional-socialistas, além de judeus ocasionais para fachada”. E daí que conclui que é “uma imensa e suja enganação” receber um prêmio literário desse bando de “vagabundos e bastardos”. Não é preciso imaginar o quanto ficaram de pé os cabelos os membros da Academia Sueca, dona do Nobel que, em vez de correrem o risco de uma saraivada de igual teor, nunca o cogitaram para essa notável — e perigosa — distinção.

8.
Uma personalidade singular, um autor singularíssimo, em seu tempo Bernhard construiu uma obra do nível de O náufrago que, por sua excelência conceitual e realização literária, deve estar em nossa mochila de livros canônicos.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

Rascunho