O fantasma da ópera

Mais que uma história de terror, “O fantasma da ópera” é um jogo engenhoso entre humor, amor e ilusão — um divertissement que fez de sua máscara um mito
Gaston Leroux por Fabio Miraglia
01/11/2025

1.
A Ópera Garnier, em Paris, impressiona por sua implantação, pela grandiosidade, pelos intensos motivos ornamentais, pela selva de mármore colorido de seu interior e pelos milhares de pingentes de cristal dos imensos candelabros; quanto ao gosto arquitetônico desse acúmulo de riquezas, esse fica ao discernimento de quem o observa. Agradou a Napoleão III, que o mandou fazer, e ele era o imperador. Pediu de última hora um puxadinho para que sua carruagem pudesse acessar o prédio às ocultas das intrigas da oposição — que andava armada de garruchas, adagas e pistolas.

2.
É exibida com orgulho pelos franceses. Agora nem tanto, mas até bem pouco tempo contavam os mistérios da Ópera, suas sombras demoníacas, assassinatos, sons guturais no meio da noite e muito sobre o misterioso lago que existe no subsolo. Lendas urbanas são sempre interessantes e estimuladoras das mentes acesas — e foi o que aconteceu com o jornalista e escritor Gaston Leroux, que escreveu uma ficção juntando essas histórias e outras de sua imaginação, publicando, em 1909, uma novela que teve êxito instantâneo e que se encontra adaptada ao cinema, ao teatro e aos quadrinhos. Pertence ao show business e, nem que seja de ouvir falar, O fantasma da ópera é de conhecimento geral.

3.
Por pertencer ao cânone do gênero de terror, é fácil ceder à tentação de fazer comparações com seus congêneres. Muitos críticos estabelecem, quanto ao domínio do terror, um paralelo com Edgar Allan Poe e Conan Doyle. É exagero, naturalmente, mas Leroux trouxe novos matizes ao gênero, incluindo nele, inclusive, cenas humorísticas. Antes de mais, esse “terror” pespegado à obra, decerto, é feito como um rótulo genérico, quase uma propaganda comercial — e enganosa. O autor sabia como lidar com essas coisas. Sua vida foi cheia de episódios excêntricos, viagens a lugares distantes; homem de negócios, fundou uma companhia cinematográfica, torrou a fortuna familiar etc. Sua vida foi um bricabraque que parecia diverti-lo. Em quase todos os retratos fotográficos aparece sorrindo, talvez de alguma piada, talvez mais por zombaria — consigo mesmo.

4.
Cenas de comédia pastelão brotam com naturalidade em meio a cenas “sérias”: “Assim que a porta se abriu […], Gabriel deu um salto da poltrona em que estava até a fechadura do armário, para tocar em algo metálico! Nesse movimento precipitado, rasgou num prego um lado do paletó. Querendo sair às pressas, bateu com a testa num prendedor da cortina e ganhou um galo enorme; logo, recuando bruscamente, arranhou o braço no biombo ao lado do piano; quis se apoiar no piano, mas foi tão desastrado que a tampa caiu e lhe esmagou os dedos da mão; voou como um louco para fora do escritório e se atrapalhou tanto para descer a escada que caiu de costas e assim desceu todos os degraus do primeiro andar”. Convenhamos: poderia servir de inspiração às trapalhadas do genial cômico do cinema Buster Keaton, na década seguinte.

5.
Um pormenor, mas importante — quase um truque de marketing: o fantasma não o era, mas sim um homem de carne e osso, e se chamava Érik. Sua deformação no rosto (parecia uma caveira e não tinha nariz) fez com que se tornasse recluso e, musicômano, acabou por viver na Ópera, nos lugares mais escondidos. Para disfarçar seu aspecto, usava uma máscara. Assim, o título verdadeiro deveria ser “O ‘fantasma’ da Ópera”; mas Gaston Leroux escolheu jogar com a dubiedade, adotando o nome que as pessoas deram ao homem — e provocar o interesse do público.

6.
O autor criou uma ficção dentro da ficção, só que, à primeira, diz que foi verdade, no prefácio: “O fantasma da ópera existiu. Não foi, como se acreditou por muito tempo, uma inspiração de artistas, uma superstição de diretores, a criação boba de cérebros excitados das meninas do corpo de balé, de suas mães, dos trabalhadores, dos empregados do vestiário ou da porteira. Sim, ele existiu em carne e osso [en chair et en os], apesar de se revestir com a aparência de um verdadeiro fantasma, quer dizer, de uma sombra.” E segue, citando pessoas, circunstâncias, datas etc., dando cada vez mais informações “concretas”. Aí entrou o jornalista inteligente, muito conhecido em Paris, que fazia reportagens aplaudidas e elogiadas por seu estilo e por sua verdade. Leroux pegou esse seu capital e o usou em sua ficção. Acreditaram? Não acreditaram? O picante já estava em ação e deu corpo à extraordinária vendagem do livro.

7.
Claro, temos uma história de amor. Érik, que se intitulava “o anjo da música”, passa a educar tecnicamente uma aspirante a cantora e por ela se apaixona. Mas também é apaixonado por ela um jovem aristocrata, formando-se assim um triângulo que centraliza a atenção dos leitores, e no qual não faltam desentendimentos, coincidências e o rapto da cantora por Érik, que a leva para as trevas do lago sob a Ópera, onde ele habitava. Disso decorrem correrias, jogos de esconde-esconde entre Érik e as graciosas moças bailarinas, o imenso lustre que cai sob as ordens do fantasma, projetando-se na orquestra — a cena emblemática de todas as representações, talvez evocando um caso real acontecido em Londres, em 1791. Enfim: lê-se o livro.

8.
Nem por sonho a conclusão do parágrafo anterior pode levar a qualquer tipo de crítica depreciativa. Leroux apostou na linearidade, dócil para ser entendida, e fórmula tão milenar quanto infalível. Soube também seguir a regra da ampliação e agravamento do conflito a cada capítulo (esse é o recurso: a tensão jamais pode cair), até atingir um ápice que, em sua forma concreta, é tão repetida em tantos dramas e filmes.

9.
O fantasma da ópera entrou para o cânone porque seu reclame foi o terror — e está certo —, mas não se pode afastar a circunstância de que foi um ótimo divertissement para seu autor, que parece não levar a sério o que escrevia, tendo em vista as contínuas gags que acontecem no enredo. E os leitores adoraram — pena que as sucessivas adaptações teatrais e cinematográficas não usaram algo dessa perspectiva, no que resultou em obras sérias em demasia, não guardando fidelidade às intenções do autor. Mas o livro, esse, vai para nossa mochila. Merece.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

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