O amante

Com “O amante”, Marguerite Duras é precursora da forma de narrar ficção confundida com autobiografia — ou vice-versa
Marguerite Duras, autora de “O amante”
01/08/2024

1.
Ao considerarmos a obra de Annie Ernaux, merecedora do Nobel, pensamos em algo rigorosamente novo, e não é difícil encontrar leitores extasiados por sua, digamos, originalidade. A memória das gentes é volátil, e a cultura, novidadeira. A precursora dessa forma de narrar ficção confundida com autobiografia — ou vice-versa — foi Marguerite Duras, há quatro décadas, com seu canônico O amante, que recebeu o Goncourt, e suas qualidades estéticas e humanas me impressionam mais do que leio em Annie Ernaux.

2.
Toda autobiografia, mesmo que ficcionalizada, e ela assim qualifica sua novela perante Bérnard Pivot, o mítico entrevistador do programa de TV l’Apostrophe, toda autobiografia tem um propósito, haja vista o Memorial de Santa Helena, de Napoleão Bonaparte, escrito para perpetuar suas glórias militares. O propósito de O amante é mostrar como ela havia chegado com aquele rosto na época em que o escreveu — um rosto composto pelo álcool e pelo desejo. É forte. Mais do que isso: essas duas marcas ela já as ostentava antes de experimentar a bebida e o sexo. É extraordinário.

3.
Posto que o cinema tenha dado grande visibilidade à novela, no elegante filme dirigido por Jean-Jacques Annaud, e que as mídias eletrônicas sigam falando em Duras e sua obra-prima, não será demasiado lembrar que a história se situa na antiga colônia francesa da Indochina, que hoje abriga o Vietnã, o Laos e o Camboja, e a personagem fala de um tempo em que era adolescente escolar de classe média e teve um romance com um rico chinês. Ele, fascinado pela beleza, e ela, pelo dinheiro, como a autora diz categoricamente a Pivot. A jovem e sua mãe, professora no interior do país, não estavam nada bem de vida, ainda que a moça tivesse acesso a uma boa escola em Saigon e nessa cidade vivesse num internato estatal. Depois das férias com a mãe, voltava à capital numa complexa viagem de ônibus; o trajeto implicava atravessar de balsa um braço do rio Mekong, ocasião em que ela apeava do ônibus para espairecer e olhar a beleza da paisagem. Num desses espairecimentos deu-se o encontro com o chinês.

4.
Temos, então, dois dos elementos essenciais a uma ficção narrativa, que vêm a ser a existência de uma situação crítica — o encontro na balsa — e o conflito, que o leitor logo entenderá como sendo a dicotomia entre dois estamentos sociais: a riqueza e a pobreza, ou outro, concomitante, mas não oposto a este: a experiência sexual versus a inexperiência. Já o drama pessoal da moça será como organizar tudo isso em sua cabeça, de modo a que pouco perca, muito ganhe, pouco sofra. Garantido está o interesse do leitor.

5.
A narração é lenta, aviso aos apressados e novidadeiros. Essa “lentidão” é necessária, para que o leitor possa formar esse rosto primordial anunciado pela autora. Os episódios não se atropelam uns aos outros; ao contrário, sucedem-se com a naturalidade em que as emoções se alteram. O que vemos, em suma, é a mudança da jovem ao status de prostituta de luxo, que se encontra com seu amante numa garçonnière em que ele recebeu já muitas mulheres. Ela não o ama, e o diz expressamente, mas se seduz pelo corpo dele, que acha lindo. Perde sua virgindade física e experimenta o prazer erótico, embora isso aconteça quase como a realização perceptível da alguma coisa que já possuía dentro de si:

Não era preciso atrair o desejo. Ele estava em quem o despertava ou não existia. Ele já estava ali desde o primeiro olhar ou jamais teria existido. Ele era o entendimento imediato da relação de sexualidade ou não era nada. Isso, também, eu soube antes da “experiência”.

6.
Essa entrega, portanto, preexistiu ao encontro da barca, o qual foi apenas o gatilho que fez disparar um tumulto interior que a levava a se vestir de prostituta aos quinze anos, já antes, adotando uma composição extravagante, sem dispensar a maquiagem e, para coroar sua figura, usava um chapéu masculino de feltro, o qual não tirava da cabeça; isso, claro, atraía olhares masculinos e femininos, e ela se sentia bem com isso. Sua mãe a reprovava, mas na certeza de que a menina conferia a si mesma um futuro em que seria inevitável um amante, ou vários em sequência, destino a que não se furtou a mesmíssima autora da novela. Eis mais um item a compor aquele rosto final da autora, a que seguiu o álcool, como estará no parágrafo 8. Como decisão romanesca, é um autêntico achado, pois quase sempre isso acontece após uma quebra da inocência traumática.

7.
Impossível não pensar no amante [cliente?], um exemplo de composição matizada de personagem-homem. Conhecedor da cultura, educado, refinadíssimo, sua sensibilidade leva-o, muitas vezes, a chorar; sim, chorar pelo simples instante que passa, ou na mera contemplação do corpo da jovem amada. Não é um fraco — é, sim, um homem possível dentre a diversidade de homens que há sobre a terra. Sabe que a família da jovem o explora, e por certo que isso o incomoda, mas não deixa transparecer o menor traço de desconforto ao abrir a carteira para pagar extravagâncias gastronômicas do irmão mais velho da moça, sob a resiliência da mãe dela. Enfim, um cavalheiro, a que nem a meteorologia afeta, e a quem os anos de estudo em Paris deram um banho lustral do que o Ocidente tem a oferecer em termos de filosofia e artes; não seriam superiores às de seu país, mas capazes de despertar-lhe a ideia de pessoa completa para compreender o mundo e a si mesmo. Por si só, valeria uma novela inteira.

8.
O álcool surgiria depois e abundante, mas o raro é que o álcool já a penetrava nos efeitos que ela enxergava nos lábios e na respiração do amante, do irmão e em toda aquela sociedade colonial e ociosa que frequentava os clubes e restaurantes exclusivos dos europeus — é possível sentir, nos ares saturados, os cheiros do uísque, do vinho, das aguardentes locais, e aquilo tudo impregnava as roupas da jovem, seus cabelos; só faltava fazê-lo circular em suas veias. Mas para esse intenso episódio de sua vida, carecia apenas seu arremate; depois de três anos, a relação se desfez, houve o retorno da família da jovem à França. Como nas lendas, muito tempo se passou e, certa noite, navegando num rio sob a lua e ouvindo Chopin, foi assaltada pela epifania de uma dúvida:

não tinha certeza se não o havia amado com um amor do qual não se apercebera, porque ele se tinha perdido na história.

Talvez ela estivesse bêbada, talvez vivesse um instante romântico, mas, talvez, e principalmente, a novela precisasse desse final como uma generosidade para com o leitor.

9.
Não desejo aqui falar em linguagem, que às vezes incomoda com algumas conotações esdrúxulas, de duvidosa poesia em plena prosa, mas o todo se sustém e é de agradável leitura. Então: por ser simples na essência, por inovar tematicamente sem utilizar as modernices de livros anteriores, O amante transformou Marguerite Duras em autora popular aos setenta anos — e merecedor do maior prêmio francês, adquirindo assim o direito de estar na nossa mochila dos canônicos.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

Rascunho