Névoa

A novela de Miguel de Unamuno é audaciosa ao correr o risco de não ser entendida por leitores ainda seduzidos pelas narrativas do século 19
Miguel de Unamuno, autor de “Névoa”
01/12/2024

1.
Na época em que foi escrita a novela Névoa (1907, publicada em 1914) apenas se inaugurava o repugnante século 20, e o pior estava por acontecer. Nas artes visuais imperava a frivolidade da art nouveau, e Picasso ainda era anônimo. Isso não impediu que o escritor espanhol Miguel de Unamuno já tivesse em si todas as preocupações que viriam a angustiar e fazer sofrer as autodestrutivas gerações seguintes. Pessoa inquieta intelectual e politicamente (morreu preso pelo franquismo), suas antenas cognitivas prescrutavam a catástrofe vindoura. Contraditório, flertava com o poder e o atacava. Enfim, um homem radioativo, contaminante em alto grau, o que não combina com seus retratos de gentil-homem refinado, apuradíssimo no trajar, e de perfil cervantino. Seus dados biográficos, suas polêmicas e escândalos são acessíveis a um clique na internet, e, por isso, como sempre faço em casos semelhantes, abstenho-me de descrevê-los.

2.
Névoa, sim, é o importante. Uma novela, pela concentração do conflito, pela onipresença da personagem central (um jovem rico, frívolo, solteiro, morador solitário de um palácio e tendo a atendê-lo uma cozinheira e um empregado de mesa e quarto), pelo agravamento contínuo da tensão e pelo desfecho; Augusto sofre pela morte da mãe, que o deixou numa orfandade incômoda — mas é dor controlada, com destino certo e que seguirá o rumo clássico dos lutos domésticos. Não tem outras ocupações senão a ociosidade e o xadrez diário no clube. Personagens com esse perfil são muito frequentes na narrativa ficcional, pois têm disponibilidade completa para viver todas as peripécias, inclusive amorosas, sem limitações de família e de trabalho. São clichês, bastante cômodos para o ficcionista, em seus decadentismos de fim de raça. Muitos desses tipos que praticam o tédio como o exercício de uma arte, frequentam as ficções de Tolstoi, Manzoni, Balzac, Oscar Wilde, Virginia Woolf, Eça de Queirós, Machado de Assis, Truman Capote, Tom Wolfe — e o cinema e séries atuais.

3.
No geral, nessas obras, tudo corre bem até que acontece o inesperado, uma situação crítica que apenas aguarda seu momento. Digamos: um abalo, que é capaz, dependendo da densidade psicológica da personagem, de causar menores ou maiores estragos. John Marcher, por exemplo, personagem de A fera na selva, de Henry James, está sempre à espera de um bote da fera que o tire do seu luxuoso enfado, e o bote acontece, e devastador. Desse roteiro, em tom menor, não foge Augusto Pérez, cuja principal característica, de certeza, não seria a imaginação, e, se pensarmos bem, ele não possui característica alguma, a não ser tornar-se vítima, malgré lui, de um enamoramento bizarro. A jovem é uma passante, professora de piano no bairro e que detesta a música, não vendo hora de despachar-se dela.

4.
Esse enamoramento, que tem pouco de sexual e muito de idealização, começa é claro, pelos olhos de Eugênia e o leva a caminhos esquisitos, como a amizade com a solerte porteira que, em seu posto de trabalho dedica-se à alcovitice e esse mesmo caminho passa pelos tios da menina, ele um chato, fanático pelo esperanto e pelo anarquismo, e ela desejosa de casar a sobrinha com o ótimo partido que é Augusto. Estão lançados os alicerces do que poderia ser um romance pícaro, mas que começa a revelar em Eugênio, aqui e ali, uma espécie de consciência capaz de reflexões mais ou menos desse teor: “os homens não sucumbimos às grandes penas nem às grandes alegrias, é porque essas penas e alegrias vêm mascaradas numa imensa névoa de pequenos incidentes, e a vida é isso, a névoa. A vida é uma nebulosa”. A ideia, claro, não é original, pois pertence a uma tradição que começa por Platão, cruza por Pascal, dentre outros, mas logo ela acrescenta: “Agora surge essa Eugênia. Mas quem é Eugênia?”. Mais adiante: “A própria pessoa é quem menos sabe de sua existência… A gente existe para os outros”. Essa indefinição do outro remete-nos às especulações pré-existencialistas que, se não eram ignoradas por Unamuno, leitor dedicado de Kierkegaard, só viriam a encontrar sua plena voga a contar de Heidegger e Sartre (“O inferno são os outros”, quem não conhece?).

5.
De modo mais simples: a esdrúxula atração por Eugênia (personagem que se revela interesseira, mentirosa e dinheirista, cheia de truques), levada adiante pela já falada idealização (“Talvez meu amor tenha precedido seu objeto.”), faz com que ele caia em cheio no drama da existência, mas, e eis aquilo que distingue Augusto de caracteres semelhantes: ele não adquire consciência do drama, e quando está no limiar dessa descoberta, ele reflete, de modo insólito: “Mas, meu Deus, por que permite o prefeito que se usem esses tipos de letras tão feios nas propagandas do comércio?” — nisso ele repete as intromissões do real que acontecem com a personagem central de A canção dos loureiros, de Édouard Dujardin, o verdadeiro criador do monólogo interior, uma década antes de A névoa. No final, ele diz: “O que come, vive, Ludovina [a cozinheira] tem razão, mas o que come como comi esta noite, por desespero, é porque não existe. Eu não existo”. Não é um pensamento de esquizofrênico, mas uma dissimulação autoimposta, que o ajudou a viver até aquele momento e ultrapassar a vida.

6.
Este parágrafo, todo ele, é um parêntese. O ficcionista se permite um jogo literário. Augusto, imaginando-se na iminência da morte, pede ao criado que, certificada esta, mande um telegrama: “Salamanca / Unamuno. Você conseguiu o que queria. Morri. / Augusto Pérez”. Isso decorre de acontecimentos anteriores fictícios (mas existentes na ficção) em que ele debate seu destino com seu criador, e ainda mais, uma novela que deseja escrever; decidi-me a não discutir esse aspecto do livro, que, como diziam os literatos antigos, faz “correr rios de tinta” na comunidade acadêmica. O leitor que pense o que desejar. Quanto a mim, prefiro ficar com a novela-ela-mesma. Névoa sobrevive, e melhor, sem qualquer frívola invenção metalinguística, a mesma prática que, depois, acabou degenerando numa ruidosa festa de São João promovida por escritores e críticos novidadeiros. Qualquer boa literatura pode poupar o leitor dessas inutilidades.

7.
Assim: a perplexidade de Augusto, que o acompanha desde sempre e para sempre, sua atitude à beira do abismo sem ninguém que o empurre é que o transforma numa criação literária única. É obra ter a ousadia intelectual de criá-lo, é obra sustentar uma novela inteira com essa complexidade, e, pior, é obra correr o risco de não ser entendido por leitores que ainda se seduziam pelas grandes narrativas do século anterior e, salvo os mais sofisticados, pouco espaço deixavam para as zonas crepusculares dos enredos e das personagens. Essas qualidades justificam que venhamos a depositar Névoa em nossa já surrada e preciosa mochila dos canônicos.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

Rascunho