1.
Num momento em que a academia e a crítica se preocupam em denominar os gêneros literários (e os leitores dispensam essa discussão, por inútil e desmancha-prazeres), costumo chamar de “novela” a esta obra-prima de Katherine Mansfield. No ano de 1922, quando foi publicada, era comum que os autores — inclusive a mesma K. M. — usassem o termo “conto” para tudo que não fosse romance, uma herança do século anterior. Pois bem, Na baía será vista como uma novela, não por seu tamanho, claro, mas por sua estrutura, em que uma história é contada, com o recurso frequente do imperfeito do indicativo, com desenvolvimento de personagens, tudo ao contrário do conto atual, que prima pela instantaneidade do acontecimento. O alienista, que ora se publica separadamente, integrou um volume de contos de Machado de Assis.
2.
Como novela, Na baía conta uma história única, dividida em segmentos, e o tempo ficcional é um dia de verão numa praia situada na Nova Zelândia em frente à capital do país. Recuso-me a fazer o clássico paralelo com as vivências familiares de Katherine Mansfield, pois isso teria apenas interesse de curiosidade bricabraque do reino da fofoca. O que importa é a obra em si, visando sua literariedade. Um dia de verão, numa praia em que todos se conheciam. A família central da história contempla não apenas o núcleo duro, mas também aderentes, amigos e empregados, num total que chega perto de quinze; como a autora não se eximiu de dar nomes a todas as personagens, por vezes necessitamos revisar anotações para saber quem é quem. Assim, objetivando maior clareza, e levando em conta o espaço desta coluna, nominarei as personagens ad hoc.
3.
Trata-se de um espaço bem conhecido da autora — e não só —; por isso, tal como Machado de Assis (que apenas escrevia “no Largo da Carioca”, “na rua das Marrecas”), ela refere circunstâncias geográficas sem maiores explicações (“Crescent Bay”, “a cidade”). Mas isso não nos falta, pois lhe interessam, antes de tudo, as representações visuais de forte teor impressionistas, a lembrar Manet:
A maré baixou; a praia ficou deserta, o mar morno recuava preguiçosamente. O sol batia, agredia a areia fina com seu calor e ardência, cozinhando os seixos cinza, azuis, pretos e os listrados de branco. Absorvia cada gotinha de água na parte oca das conchas curvas; desbotava as corriolas-campestres rosa que se enroscavam por completo entre as dunas de areia.
Também é impressionista quando descreve uma senhora:
O laço pálido no alto do cabelo da sra. Stubbs estremeceu. Ela dobrou o pescoço roliço. Que pescoço tinha! Começava com uma com um cor-de-rosa brilhante, e depois mudava para uma cor quente de damasco e esta última desvanecia para o tom de um ovo marrom, e então para um creme escuro.
Renoir por certo que teria gosto em pintar esse retrato. Mais não cito, porque a narrativa está toda plena dessa volúpia visual. O mais interessante é que não são apenas ineficazes ornamentos beletristas, mas, sim, integram-se às ações; não as precedem automaticamente, como muito fez o Romantismo e escritores amadores copiam, mas surgem, na maior parte das vezes, durante as ações, conferindo pausas de prazer, como se o olhar das personagens ultrapassasse seu drama pessoal para um divertissement da tensão. Em suma: nenhum espaço é inocente em Na baía — e em nenhuma boa narrativa.
4.
A ação, as tensões, os conflitos, esses, são o melhor domínio da autora. Para tanto, age como as técnicas das pinturas impressionistas: trabalha com golpes de pincel nem sempre conexos (a conexão é trabalho do leitor), quase sempre brilhantes. Da mesma forma trabalham Marcel Proust, Joseph Conrad (Lord Jim) e, na música, Claude Debussy (L’après-midi d’un faune) e Maurice Ravel (La valse). Não pretendo teorizar sobre o impressionismo nas artes, mas o leitor saberá fazer as aproximações. Embora tenha dividido sua obra em capítulos — um dia teremos de problematizar o uso obsessivo de capítulos, que mais atrapalham do que ajudam, cindindo a fluência —, tais capítulos de Mansfield não significam terrenos delimitados por teodolitos topográficos, mas se integram uns aos outros num continuum de paisagem.
5.
Sobre o conteúdo de Na baía, todos sabemos que as análises são abundantes, cada qual assumindo um viés, sendo a perspectiva autorreferencial a mais frequente, mas, como disse antes, nada servem à literatura. Prefiro dizer que se trata de uma trama feita à base de atritos e desejos entre personagens, tal como costuma praticar a autora no conjunto de sua obra. Claro, não levam a tragédias familiares explícitas, mas a uma ideia de subjacentes rancores e paixões — e ambos os sentimentos, como se sabe, são inexplicáveis, apenas se sabe como funcionam. A matrona, ali, é a sra. Fairfield, generosa e compassiva, em especial com sua netinha; de seu trono invisível, ela maneja os cordéis, mas nem sempre é hábil, porque ignora os assuntos mais secretos de cada personagem — o leitor os conhece, dada a focalização onisciente adotada por Mansfield, e isso causa uma boa assimetria entre o que nós conhecemos e o que a sra. Fairfield não sabe, como, por exemplo, as práticas interesseiras de sua empregada com uma lojista local, nem o que acontece em sua família, como o ardor erótico de Beryl, dedicado a um estranho e errático homem, ou a aversão de Linda por crianças. Esse jogo de encobrimentos de uma personagem à outra, entretanto revelados ao leitor, é mais uma boa solução para quem está à busca de técnicas para dinamizar e pluralizar seus próprios textos.
6.
Ninguém nesta novela é isento de intricadas formas de estar no mundo, com suas atitudes incompletas e, principalmente, com suas faltas de ações decisivas que poderiam dar um deslinde a seus traumas e conhecer com nitidez a natureza de suas relações com os outros. Ninguém é absolutamente sincero, nem para si mesmo. Impressionistas, como Monet e sua catedral de Rouen em diversas horas do dia, se trabalhavam com a sugestão da imprecisão das cores, também não faziam questão de deixar seu desenho preciso; o flou impera.
7.
Esses artifícios, desenvolvidos pela mão de Katherine Mansfield, complexificam o texto e, para tanto, é preciso dispor do espaço maior de uma novela literária para serem desenvolvidos. E por se constituir num exemplo desse precioso gênero literário, e exemplo da mais alta qualidade, Na baía já deveria estar há muito na nossa mochila, e é leitura imprescindível a qualquer leitor de sensibilidade e conhecimento da arte, não apenas da literária.