1.
Penso que é o momento de dizer que meus comentários sobre as obras canônicas têm por objetivo trazer novas luzes interpretativas e, por isso, podem realçar vieses específicos do texto comentado, excluindo o relato dos respectivos enredos e o estudo da biografia dos autores: se são canônicas, todos as conhecem, por leitura direta ou por uma simples consulta na internet. Proponho-me, assim, a ir diretamente à obra e suas circunstâncias internas o que pode, de quando em vez, envolver aspectos conjunturais.
2.
No caso da obra Jane Eyre, de Charlotte Brontë, é preciso estudá-la na individualidade de sua escrita, afastando-a das obras de suas irmãs, com as quais sempre aparece umbilicalmente atada. Assim, falar num conjunto genérico “irmãs Brontë” é um pensamento preguiçoso, um desmerecimento e, pior, um colossal equívoco hermenêutico.
3.
O romance mais conhecido de Charlotte Brontë tem razões de sobra para sua notoriedade. Possui força estética, com suas frases elegantes e estrutura sólida, mas, antes de tudo: a personagem central nos convence, e este é o olhar da coluna deste mês. Todas a suas peripécias soam naturais porque estão ancoradas em sua interioridade mais profunda. Numa comparação banal, e isso vale para qualquer romance: a história são os andaimes, e o cimento é a personagem, e a personagem pode ser acreditável na medida em que podemos intuir um complexo de circunstâncias que constitui sua questão essencial. Podemos adivinhá-la a partir do que o autor destina às falas, pequenos gestos e pensamentos da personagem. Jane Eyre é uma autobiografia ficcional, onde o “eu” impera. E como é esse “eu” que existe desde sempre em Jane e, portanto, é pré-narrativo e será pós-narrativo? Antes de tudo, é uma entidade que comporta múltiplas camadas, que podem ser identificadas como solidão, baixa autoestima, timidez, sobranceria, busca de afeto, arrebatamento, preconceito, desejo de amar, voluntarismo exacerbado, autocentramento. Não são contradições entre si; são, melhor talvez do que camadas, são fractais psicológicos que convivem na mesma pessoa e que — porque de literatura estamos falando — servem para estruturar o romance e, lá na ponta, dão origem aos episódios. Estes, assim, são determinados, “gerados” pela qualidade seminal da personagem. Todo ficcionista deve levar isso em conta quando está pensando em escrever um livro. A credibilidade da personagem decorrerá da articulação desses múltiplos vetores. Em tese, Jane Eyre poderia ser uma jovem a viver em qualquer era, pois as circunstâncias [espaço, tempo, cultura etc.] são adjetivas. Em outras palavras: não entendo como razoável a ideia de uma personagem que só exista nas circunstâncias que o ficcionista criou para ela, incluindo-se, aí, a infeliz jovem do romance de Charlotte Brontë.
4.
“Infeliz jovem”, escrevi, e cabe relativizar. Antes disso: sua vida não é infeliz apenas pelos acontecimentos, pois isso seria levar essa obra a uma solução rasteira; é infeliz porque ela vê o mundo de modo infeliz, numa contínua senda descendente em direção à desgraça completa. [Claro que o uso da primeira pessoa, como sempre acontece, colabora para a contínua — e enfadonha — autopiedade de qualquer personagem.] No caso de Jane Eyre, entretanto, esses acontecimentos “externos” — o fato de ser órfã, depois ser levada viver com parentes odiosos, depois internada numa escola, depois encaminhar-se como preceptora de uma criança que é filha de um senhor chamado de Rochester, e esse senhor é a sedução em pessoa, depois é mostrada como mendicante, depois volta a reencontrar aquele senhor que passara a amar — esses acontecimentos seriam verdadeiro estofo para um romance lacrimoso. Jane não, é diferente: não pratica a infelicidade como programa de vida, mas sabe contrastá-la com as outras condições que têm dentro de si, já enumeradas no parágrafo anterior, que são tão fortes como o olhar infeliz. A sobranceria inata, por exemplo, faz com que ela se revolte contra os fatos impostos pela vida, estando em constante divergência com a maioria das pessoas. Eis a grande conquista de Charlotte Brontë: transformar um tipo literário numa autêntica e autônoma personagem.
5.
Por força de sua diversidade interior, a personagem nos surpreende a cada momento. Quando pensamos que vai para um lado, ela vai para outro, e sem que haja qualquer inconsistência nisso. A atitude de afastar-se de seu patrão Mr. Rochester e da casa em Thornfield Hall — que considero o episódio mais dramático do romance — corresponde a uma renúncia amparada por sua sobranceria. Não iria resignar-se com um papel secundário e dependente. Assim, é na vida adulta que sua complexa interioridade aflora com maior nitidez e, se lhe causa sofrimento, também lhe permite argumentar quando provocada, gerando a necessária tensão que atinge o leitor. Jane mostra, também, uma habilidade sorrateira, quase dissimulada, a desmentir a imagem de “boazinha”:
um tratamento ríspido não me prendia a nenhuma obrigação; pelo contrário, uma aquiescência educada diante daqueles modos extravagantes me deixava em posição de vantagem.
Ela representa suas próprias falas em discurso direto e, em alguns casos, comenta-as, significando que quer o controle por inteiro do seu papel. Há um momento, em Thornfield, que Jane se encontra com seu patrão, e há o seguinte diálogo:
“Está me examinando, srta. Eyre?”, perguntou ele. “Está me achando bonito?” Se eu houvesse refletido, deveria ter respondido à pergunta com algo convencionalmente vago e educado, mas por algum motivo a resposta escorregou da minha língua antes de eu me dar conta. “Não, senhor.”
De fato, Jane possuía uma questão essencial múltipla e cheia de nuances.
6.
Muito a dizer sobre essa personagem de exceção naquele momento da cultura; Jane ultrapassou seu tempo, e sua autora instituiu uma inesperada forma literária de representar a mulher. Por isso e muito mais, Jane Eyre merece ir para mochila.