1.
A um aluno que comentei sobre minha vontade de escrever sobre Françoise Sagan, notadamente sobre Bom dia, tristeza, deixei-o intrigado. Como pode um livro escrito por uma autora de 18 anos pertencer ao cânone? Não deixava de ter razão, levando em conta o senso comum. Eu lhe disse que iria pensar. Não precisei pensar muito. Logo eu já tinha na cabeça o Le bateau ivre [O barco bêbado, literalmente] de Rimbaud, escrito aos 16 [segundo alguns, 17 anos], e nada mais canônico do que Rimbaud. No whats que mandei ao aluno, ele aceitou meu argumento, mas comentou “mas a qual cânone?” Se Le bateau ivre é inserido sem dúvidas no cânone simbolista mundial, a qual pertenceria Bom dia, tristeza e sua autora? As pessoas sempre encontram soluções quando estas já estão previamente aceitas, então não foi difícil: para já, pertence ao cânone francês da segunda metade do século 20, fortemente marcado pelas preocupações existencialistas e, depois, pelas ideias rebeldes (feminismo incluído) que iriam desembocar no Maio de 1968. Como o chavão aplicado a qualquer período histórico, “era uma “época de grandes transformações” — como se qualquer época não fosse de grandes transformações.
2.
Não tem importância para ninguém, mas minha primeira leitura foi há mais de 60 anos e o novo chavão é que os livros não se transformam; nós, sim. Nada mais certo. Fui levado à primeira leitura pelo sucesso internacional da obra, pela adolescência da autora, e não só: era escrito em primeira pessoa, o que levava a um picante voyeurismo e, ademais, eu precisava testemunhar meu tempo. Penso que quase todo mundo tinha essas mesmas aliciantes e somadas razões; quanto a mim, me pareceu uma literatura de segunda classe, talvez porque utilizasse uma linguagem comum e um enredo banal, girando em torno de gente blasé e rica (e talvez um pouquinho de preconceito com a juventude). Agora, depois de seis décadas, aplico o dito que os fãs do tango atribuem a Carlos Gardel: Françoise Sagan está a escrever cada vez melhor.
3.
O curioso (ou nem tanto assim) é que parece haver um primeiro diálogo de Bom dia, tristeza com outro canônico que trata de uma história de jovem, O apanhador no campo de centeio, de Salinger. Ambos saíram em livro com um intervalo de apenas três anos entre um e outro. Se as preocupações de Salinger se voltam para a crise geracional pós-guerra, com muitos aportes sociais, já a novela de Françoise Sagan tem uma personagem central que investe no seu “eu” profundo, atingindo, como dito, os parâmetros do Existencialismo triunfante. Não sei por completo o que isso pode significar, além de algumas obviedades, de modo que o assunto está a descoberto para estudos que a dimensão e o tema da coluna não podem abranger.
4.
O que fica de mais relevante da releitura de Bom dia, tristeza é a naturalidade da fala adolescente, mas não só a fala: aqui temos uma jovem que, sem ser um tipo, instaura-se como uma entidade pessoal unívoca. São as dúvidas, as pequenas e grandes maldades, o sentido ético, o gosto de bajular os pais para redimir-se, o tédio perante os livros de Bergson (necessários para a prova final do Ensino Médio — o temível “bac”), um tom de criança num corpo que começa a ter suas exigências, enfim, o que qualquer pessoa poderia adiantar como esperável de uma novela com esse tema. Sim, não fosse Françoise Sagan a escrevê-la. Assim, o aborrecimento, fator que gerou a brega expressão brasileira, “aborrecente”, não é genérico, é o aborrecimento de Cécile-ela-própria, com suas causas e seus efeitos sombrios. Ela não é vítima da padronizada revolta, tanto dos livros de psicologia quanto das queixas maternas. Cécile é um ser humano.
5.
Como ser humano, ela se apaixona, e é por um jovem, vizinho de praia, e a cena de sua iniciação sexual é o epicentro de toda novela, pelo que contém de exuberante drama, o qual é visto sobre o fio da navalha:
Meus pensamentos estavam confusos: aquilo deveria acontecer, aquilo deveria acontecer. Depois foi a ciranda do amor: o medo dando a mão ao desejo, a ternura, a raiva e aquele sofrimento brutal a que seguia, triunfante, o prazer. Tive a oportunidade — e Cyril, a delicadeza necessária — de descobri-lo já naquele dia. Fiquei perto dele uma hora, aturdida e espantada.
A isso se segue a tarefa de encobrimento da pequena família, e a primeira pessoa que ela vê é Anne, sua madrasta, que lia ao sol, numa espreguiçadeira. Cécile, para acalmar-se, tenta acender um cigarro, não consegue devido ao tremor pelo recentíssimo acontecimento, suas mãos são inábeis, e “… Anne deslizou as mãos sobre meu rosto, relaxou-me. Depois, colocou um cigarro aceso em minha boca e mergulhou de novo na leitura”. Com esses gestos silenciosos, Cécile incorporava-se de novo à família. Ao menos formalmente, mas de maneira suave.
6.
Uma perturbadora e irremediável mudança está em curso; quando Raymond, seu pai, do nada, anuncia seu próximo casamento com Anne, há um tremor de terra nos domínios emocionais de Cécile, e ela passa a arquitetar um estratagema infantil e cruel para desmantelá-lo, contando com a conivência e franca cumplicidade de Cyril e de uma das tantas namoradas do pai. Neste ponto, é possível estabelecer outro diálogo, desta vez com Reparação, de Ian McEwan, e sua jovem personagem Briony Tallis. Tal como Cécile, Briony acaba por criar uma conjuração terrível para separar um casal de noivos. Ambas as tramoias implicam mentira e embuste, e ambas têm um final funesto, sendo que o de Cécile é pior, é trágico. As jovens personagens resolvem sua culpa cada qual a seu modo: Briony escreve um romance de sucesso para contar a verdadeira história; já Cécile tem de conviver, na companhia do pai, com a tristeza irremediável pela responsabilidade de uma morte, o que irá pontuar sua vida daí pela frente:
Sinto-me tão perto do que se costuma chamar de consciência pesada, que sou obrigada a fazer uso de certas ações, como acender um cigarro, pôr um disco para tocar, telefonar para um amigo. Pouco a pouco, passo a pensar em outra coisa, mas não gosto disso, de precisar recorrer às falhas da minha memória e à leveza de meu pensamento, em vez de combatê-las. Não gosto de reconhecê-las, nem mesmo para me felicitar.
7.
Uma novela juvenil? Seria a pior das classificações acadêmicas. Antes de mais, é o registro de uma alma que, sendo juvenil, fala para todos, que mantemos dentro, no mais profundo, a possibilidade da melhor alegria e, nós ao mesmo tempo, sabemos o quanto qualquer alegria está sempre à beira da catástrofe. Não sou eu quem o digo, mas Françoise Sagan, que com seu belo e infeliz Bom dia, tristeza, merece ter seu nome e sua obra no cânone de um século que não fez outra coisa senão autodestruir-se. Tal como este em que vivemos. Vai, sim, para a mochila.