1.
O imenso Goethe do Werther — obra a que já dedicamos uma coluna — e do Fausto dedicou-se, no verão de 1809, a escrever uma narrativa que tem por título uma expressão científica da química, As afinidades eletivas. Weimar, nessa estação, transforma-se numa das mais belas cidades do Thüringen [em português, com o horrendo nome de Turíngia], e somos assombrados pela qualidade e variedade das flores (dentre elas, o “brinco-de-princesa” pendente das sacadas) e, mais um passo, pela imponente casa de Goethe, hoje um museu, a qual impera sobre uma praça de cenário romântico. Ali ele escreveu essa novela, para nós estranha, em que “não acontece quase nada”, embora sintamos uma tensão vibrando em todas suas páginas. Imagino que Goethe a elaborou com grande prazer, aproveitando os perfumes da belle saison, mesmo que, depois, o livro tenha sido massacrado pela crítica, a começar pelo título; tomando como exemplo uma ideia divertida de R. J. Hollingdale, imaginemos, hoje, um livro chamado de “Composto orgânico”. Mas o achincalhe não ficou por aí; também foi acusado de imoralidade, algo exótico numa sociedade tão permissiva como a de Weimar.
2.
Para entendermos o espírito dessa obra, é preciso ter em conta a existência de uma nobreza rural ociosa à espera de que o fenômeno napoleônico viesse devastar suas terras. (Entretanto, quando o líder francês invadiu Weimar, Goethe e a cidade foram preservados.) A história se passa, quase toda, durante uma renovação paisagística que um casal castelão, Eduard e Charlotte, promove em suas terras e, para realizar esse capricho, recebe como hóspede o Capitão, agrimensor e cheio de ideias científicas. O assunto do paisagismo não era estranho ao autor; aliás, penso que nada lhe era estranho. O amplo jardim, que se situa na parte traseira de sua residência, ainda hoje nos encanta, e, claro, é bem cuidado. As janelas de seu escritório e de seu quarto abrem-se justo sobre esse jardim inspirador. Mas Goethe também era homem da mudança de século, em que o Iluminismo convivia com o incipiente Romantismo, anunciado, por ele mesmo, anos antes, com o Werther. Essa dualidade deveria ser fascinante, na cabeça de uma pessoa ilustrada. Tudo a consolidar do Século das Luzes, tudo a descobrir no século 19 — e a Natureza aparecia como uma entidade própria e surpreendente, revelada, ou até “inventada”, como se dizia, por pensadores como Alexander von Humboldt e seu companheiro Aimé Bonpland. No que tange aos costumes, como disse, havia uma inesperada resiliência, com a aceitação natural do divórcio e das uniões livres; o próprio Goethe e suas sucessivas ligações abertas são um cabal exemplo.
3.
As afinidades eletivas é um painel desse momento. Temos já três personagens; a essas soma-se Ottilie, sobrinha de Charlotte e sua filha adotiva, que vem para o castelo e da mesma forma se engaja nos trabalhos de construção do paisagismo do entorno. Grandes obras, propiciadas pela imensa fortuna e por pessoas interessadas, cada qual a seu gosto: se o Capitão afincava-se a cálculos trigonométricos e utilitários, Charlotte desenvolvia ideias sonhadoras e pouco exequíveis. Eduard e Ottilie eram espectadores desse debate, transcorridos nos longos serões de leitura que aconteciam após os trabalhos diários. Eram conversas de início harmoniosas, em que o Capitão, a propósito do texto de um livro, explicou o complexo termo químico, hoje em desuso, das “afinidades eletivas”, mas que, de modo bem simples, discorria sobre a atração e repulsa entre elementos que, depois, sintetizavam-se por um reagente, o qual desaparece no universo sem fim. O mesmo processo, ele mesmo deduzia, aplicava-se às relações afetivas, em que sempre alguém é eliminado.
4.
Não é preciso ter muita imaginação, portanto, para perceber que Goethe aplica esse princípio em seu romance. Com o passar do tempo, começam a manifestar-se as inclinações eletivas “não ortodoxas” de umas personagens às outras o que, consoava com o espírito do tempo e da teoria exposta pelo Capitão, mas que, ali, causavam mal-estar e rixas. Quer-se dizer: quebrava-se a aparente harmonia de écloga, instaurando-se um clima de disputa e acirramento. As personagens passam a agir e a dizer coisas derivadas de suas perturbações emocionais e suas condutas, por vezes, tornam-se inconsequentes e abruptas, atentando, inclusive, contra a integridade ficcional de que deveriam ser dotadas. Erro compositivo do escritor? Talvez, mas lembremos que a narrativa não era seu modo privilegiado de expressão; no Werther o uso da primeira pessoa foi um belo recurso técnico para tornar mais naturais essas mutações emotivas. Já As afinidades eletivas é uma obra conduzida por uma voz onisciente, em que o autor se mostra audaz e, às vezes, exercita uma prosa algo apressada — um perdoável cochilo de Homero. Ao contrário de ser um defeito, é uma qualidade positiva para quem se inicia na escrita, pois é possível perceber, a quente, o forcejar autoral e suas eventualidades.
5.
E nosso quarteto? O ritmo do romance se manifesta como um processo de sístole e diástole, em que a narrativa ora assume um tom cheio de episódios, ora de longas digressões pensativas e descritivas, envolvendo o leitor de maneira completa. As sinestesias têm muito a ver com esse modus compositivo. Quando se esgarçam as ações, Goethe preenche as passagens de odores, texturas, sons de toda espécie e perspectivas visuais arrebatadoras, o que dá a elas uma efetiva presença. Essa eficaz técnica Goethe já usava desde o Werther, quando o jovem romântico comparava seu estado de espírito à paisagem desvanecente do outono centro-europeu. E quanto ao nosso quarteto?, repito. Bem, ele segue rumo ao abismo e à tragédia, com traições (o “duplo adultério”), um filho “ilegítimo”, divórcio e morte. Curiosamente ou não, trata-se de uma “tragédia reconstrutiva”, em que as coisas parecem acertar-se com naturalidade ao final. O leitor não sai mortificado pelo destino das personagens, mas entende que tudo deveria terminar assim para que o mundo se recompusesse, tendo como cantochão o título do livro e suas nuances humanas. Eis aí o grande alcance dessa obra: justifica-se a si mesma, compondo um universo de repulsões e atrações inevitáveis e que legitima eventuais incongruências.
6.
Nunca adotei critérios de corridas de cavalos em se tratando de arte e literatura; mas As afinidades eletivas são, na largura e na altura, uma obra de inteligência, rigor e sensibilidade, que não apenas se alevanta como representativa de certo momento da cultura, mas como o resultado de um espírito embebido da Tempestade e ímpeto que se soma a uma poderosa individualidade, e por isso, por essa conjunção, merece estar em nossa mochila canônica — que, aliás, não pesa nas costas, pois só tem coisa boa, e tudo que é bom é leve.