A trégua

Romance do uruguaio Mario Benedetti investe na dupla-face do amor e do social
Mario Benedetti, autor de “A trégua”
01/09/2024

1.
Sob o ponto de vista da história da economia uruguaia recente, não precisamos nos surpreender com o fato de que Martin Santomé, empregado de uma empresa comercial em Montevidéu, venha a se aposentar aos 50 anos. O país aqui ao lado, mercê da exportação da lã e da carne bovina, vivia um momento de intensa prosperidade. A precocidade da jubilación jogava no tédio centenas de pessoas válidas. Santomé, contudo, considerava-se velho — o meio e a cultura assim o determinavam, e, para agravar seu estado, era viúvo com dois filhos e uma filha. Todos moravam na mesma casa, eram adultos e não se davam bem entre si. Um lapidar quadro de naufrágio.

2.
A novela de Mario Benedetti tem como espaço privilegiado o centro da capital Oriental: suas livrarias, restaurantes, praças, bondes, feiras. Um lugar civilizado e sereno, onde as pessoas podiam perder tardes inteiras bebericando num café e ler de graça um jornal de cabo a rabo. Os garçons eram, cada qual, personagens de romance. Todas as pessoas sabiam da vida de todo mundo. De repente, o inesperado: Martin Santomé, a semanas de se retirar do serviço ativo, apaixona-se por uma jovem e recém-chegada funcionária de sua seção. Antiquado e respeitoso, trata Avellaneda por “senhorita”, e não sabe como encaixar essa novidade emocional em sua previsível rota rumo ao declínio.

3.
A trégua (1960) faz pendant com O túnel (1946), de Ernesto Sabato, pois ambos tratam de amores de homens maduros, urbanos, e ambos terminam em tragédia. Se O túnel tem forte vocação existencial-existencialista, A trégua investe na dupla-face do amor e do social. Vemos Santomé a todo momento preocupado com as repercussões de seu assunto perante seus colegas, chefes, filhos, amigos, a ponto de esse emaranhado de preconceitos vir a empanar a fruição plena de seu enamoramento. Além disso: ele não apenas se impressionava com o papel que a sociedade lhe impunha, como estava decidido a envelhecer — mas nada disso, na aparência, preocupava Avellaneda.

4.
Outro elemento perturbador é a memória; no caso, dos tempos felizes com sua esposa. Dela, a lembrança não é apenas do amor conjugal, mas do intenso erotismo que o cercava, e parece que se resumia a isso, tanto que às vezes lhe esquecia o rosto. O idílio com Avellaneda, se é que assim se o pode chamar, durou pouco tempo, vivido numa planície repetitiva e quase que apenas no pequeno apartamento que ele alugara, no qual tinham vida de casados.

5.
Não é fácil ir à questão essencial (o emaranhado psicológico que todos possuímos) de Santomé mas, pelo que a novela apresenta, pode-se ver nele um homem inseguro, desconfiado, sempre precisando de aprovação; no caso, dos filhos, de quem se julgava devedor de alguma coisa indefinida, e da própria sociedade; mascarava tudo isso com certa impassibilidade exterior que, contudo, abre espaços para a premeditação, quando promoveu um encontro supostamente casual entre sua filha e Avellaneda. Queria estar bem com ambas, e conseguiu. O mesmo não obteve com os filhos homens. No mais, distraía-se. O fato de manter relações cordiais com amigos chatos (cada qual na qualidade de sua chatice) era a maneira de dizer a si mesmo que poderia haver quem fosse pior do que ele.

6.
A leitura de A trégua pode levar-nos a uma espécie de passadismo a que não estamos acostumados; não tendo alternativa senão aceitar o tempo e as circunstâncias da novela, podemos descobrir algumas singularidades. Personagem sem preocupações metafísicas — nem a morte o inquieta —, Santomé é o tipo de pessoa a quem nunca serão acometidos grandes feitos além de fechar o livro-caixa, juntar papéis de despesas e escrever relatórios a todo momento. Nenhum filme o encanta, nenhum concerto o atrai, não tem biblioteca, sequer um livro, em casa. O Solís não aparece nenhuma vez, apesar de Santomé circular pela praça Independência à busca de um pingado e sentar-se por horas no café Tupi. A narrativa nos atrai justamente por essa medonha falta de interioridade. Vejo isso como o sinal do competente escritor, que consegue representar alguém que lhe é completamente oposto, e mais, dar verdade a essa representação. É obra conseguir isso num livro.

7.
A trégua é uma narrativa em primeira pessoa (um diário), o que lhe dá o frescor de uma contínua descoberta. Aceitemos que se trata de um artifício estético — mas o que não é artifício, na arte? — que pretende dar ao leitor a impressão de que aquilo está a se desenvolver ante seus olhos; nada mau, porque tudo se torna possível. Como narrativa do “eu”, o livro não sucumbe, entretanto, à tentação da autopiedade. O que poderia ser um rosário de lamentações, acaba resultando numa leitura que transmite alguma solidariedade por sua personagem central. Ele não nos aborrece. Em nenhum dos momentos difíceis Santomé lamenta sua sorte, e mesmo quando ocorre a morte de Avellaneda ele escreve frases feitas: “Meu Deus. Meu Deus. Meu Deus”. Estendendo esse cordão sanitário que cerca e limita suas dores, seu horror infelicitatis por uma vida inteira levou-o a aceitar o que se lhe viesse pela frente, mas sem ascender à sofisticada arte dos estoicos. De tudo isso resulta uma narrativa inteiriça, em que a personagem se mantém a mesma do início ao fim. A tensão, essa, é transferida às emoções do leitor, que acompanha com crescente desassossego uma rota de assustadora imprevisibilidade.

8.
Não tenho nenhum reparo a fazer ao grande escritor, exceto que é perceptível um universo léxico e sintático uniforme a todas as personagens, independentemente de seus temperamentos e de suas condições socioeducacionais; mas aí está presente o ficcionista hispano-americano Mario Benedetti, pertencente a uma geração que teve na língua culta uma poderosa referência; por isso, seus diálogos literários impressionam menos do que aqueles dos escritores norte-americanos. A geração mais recente, e lembro agora de Pedro Mairal ou Samanta Schweblin, que adquiriram uma forma bem mais flexível de colocar suas personagens a dialogarem.

9.
Numa sutileza que pede do leitor uma grande parcela de acuidade na transformação desse homem banal na metonímia de todos os nossos medos de submergir na incerta vida corrente, A trégua merece estar na mochila dos canônicos do nosso Continente.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

Rascunho