A princesa de Clèves

Publicado em 1678, romance de Madame de La Fayette é precursor das novelas psicológicas do século 20
Madame de La Fayette, autora de “A princesa de Clèves”
01/11/2023

1.
Poucos terão lido essa narrativa, ainda que canônica, de autoria da Madame de La Fayette, nobre ilustrada do século do Rei Sol; no entanto, poder-se-ia dizer que A princesa de Clèves, saído anonimamente em 1678, é o primeiro romance moderno que, numa viagem no tempo, institui-se como precursor das novelas psicológicas do século 20. Sim, a façanha dessa escritora não é pequena, e a importância da obra transcende o interesse arqueológico para constituir-se em fonte de prazer e conhecimento; prazer em si, pelo deleite do texto e pelas surpresas que nos fazem seguir adiante, e conhecimento de um tempo pregresso: o leitor de hoje não terá problema em ler A princesa de Clèves, mesmo que não conheça seu plano de fundo, porque dele tomará ciência pela própria leitura e, milagre para a época, na perspectiva das próprias personagens. Claro, poderá estranhar o léxico e a sintaxe, que demandam alguma concentração e falta de pressa, as quais, reconheço, não se incluem entre as melhores qualidades que caracterizam nosso tempo — mas esse mesmo leitor logo estará acostumado ao ritmo das frases, como sempre acontece perante textos “difíceis”, especialmente os já seculares.

2.
Falei em romance, e de romance se trata e, para evidenciar isso, quero apresentar alguns traços identificadores do gênero, tais como aparecem nesta obra. São estes, fora de ordem de ocorrência: uma multiplicidade de perspectivas, uma situação crítica, um drama pessoal, um conflito, um enredo, um começo e um desfecho, tudo costurado com a competência de ficcionista atual. E isso é obtido a partir de uma história simples, uma história de amor, cujo epicentro é a personagem que dá título à obra. Aliás, todas as grandes obras literárias são simples; as medíocres é que dão trabalho, pois pretendem “fazer literatura” e, nisso, se atrapalham até com uma personagem que traz um copo d’água.

3.
A multiplicidade de perspectivas de A princesa de Clèves leva-nos a uma intensa polifonia narrativa, presente na complexidade de vozes que apresentam suas versões do conflito, seja por pensamentos, seja em falas, dando ao leitor a liberdade de aderir solidariamente a uma ou outra personagem. Claro, a focalização conta a história intrusivamente, e isso é perceptível, mas, por um processo muito sutil, talvez nem Madame de Lafayette tenha se apercebido o quanto “deu autonomia” às suas personagens e, assim, cada qual tem a sua verdade e sua versão do acontecido. À vista de A princesa de Clèves, contudo, não seria má ideia repensar o conceito de que tenha sido Dostoiévski o inventor do romance polifônico.

4.
Discussões ociosas à parte, cabe pensar na personagem. Quem é essa princesa que dá sentido ao enredo? Antes de tudo, uma jovem aristocrática de transcendental beleza que chega solteira e virgem à corte de Henrique II, acompanhada de uma mãe que deseja achar um bom partido para ela. Logo o encontra, e ela se casa sem amor, mas com respeito e afeição — sentimentos que fazem desandar qualquer erotismo — com o Príncipe de Clèves, que lhe dá o título e o nome; quando o Duque de Nemours, considerado o homem mais belo do reino, chega na corte, ela se apaixona por ele, e ele passa a assediá-la — aliás, assedia qualquer ser humano que use saias. O que poderia descambar numa tragédia de punhais e duelos, transforma-se numa narrativa íntima, de refinada urdidura emocional. Aparecem personagens históricas, as necessárias para situar o enredo, mas a centralidade é dessa jovem. Princesa de Clèves nos convence de sua existência, mais do que o rei Henrique II, mais do que Diana de Poitiers, mais do que Maria de Médicis, pois ao contrário dos anteriores, apresenta delicada diversidade interior, capaz de avanços e de recuos, de esperanças, lágrimas, sofisticadas elaborações emocionais. Mantém com sua mãe uma relação ambígua de submissão e dúvida e — aqui um ponto de contato com Madame Bovary —, em meio aos mil interditos da época, julga-se no direito de amar outro homem que não seja seu marido. A autora, e eis mais um prêmio ao leitor, é capaz de dotar a Princesa com filigranas da alma, que se afastam das tradicionais representações de submissão e aos princípios religiosos e morais. Aliás, Deus nunca é citado, nem os mandamentos da Igreja.

5.
Abro um hiperlink para assinalar o papel do Príncipe de Clèves, nesse enredo. Depois que a esposa confessa que o traiu [ainda que em pensamento, não esperemos nada mais picante], ele, depois de beijá-la, diz:

Podeis lamentar meu destino, Senhora. Sou digno de piedade. Perdoai-me, se nos primeiros momentos de aflição tão violenta como a que sinto, não correspondo a procedimento como o vosso. Vós me pareceis mais merecedora de estima e admiração do que qualquer outra mulher. Mas eu me sinto, também, o mais infeliz dos homens.

Eis aí um cavalheiro de atitude “moderna”, pois não mata a mulher, como seria lógico naqueles tempos, mas, engolindo a decepção e a raiva, entende-a. E mais: tem a suprema elegância de logo deixar-se morrer.

6.
A situação crítica ocorre já no início — eis um excelente ensinamento a iniciantes — quando ela descobre sua paixão pelo Duque de Nemours, e isso a leva a seu drama pessoal, que é o de viver entre o amor do matrimônio e o amor do coração. O conflito vem à tona, e pode ser resumido numa díade de opostos: realização versus não realização amorosa, o mesmo que embala a quase totalidade dos romances que existem e, também por isso, garantida fica a universalidade a obra de Madame de La Fayette. O enredo, de que adiantamos talvez mais do que o recomendável, processa-se com a naturalidade de qualquer bom romance, em que é respeitada — tirantes uma ou duas impossíveis coincidências — a relação de causa e efeito entre os diferentes episódios que o compõem.

7.
O desejo de renúncia, assumido pela Princesa, é originalíssimo e singular: ocorre nem tanto em atenção à memória do já falecido marido, muito menos por falta de amor por Nemours, mas por uma construção de sua sensibilidade, a qual implica o domínio profundo da natureza humana e, mais proximamente, da sexualidade masculina tal como ela a entendia. Observe-se o primor de sua lógica emocional, quando ela diz ao Duque, num momento em que já não havia impedimento de se casarem:

Nada vai me impedir de reconhecer que nascestes com tendência para as conquistas amorosas, e com todos os artifícios para assegurar-vos do êxito. Já tivestes muitas namoradas e muitas aventuras, e ainda as tereis. Eu não vos faria feliz. E, se eu vos visse desejar outra mulher? Sofreria, e não posso assegurar que não teria ciúmes.

Quer-se dizer, em linguagem vulgar: “Não quero ter por marido um mulherengo; então, adeus”. A alternativa, para ela, foi internar-se num convento — o clássico, na época —, não para ralar os joelhos em orações e entorpecer-se com os fumos do incenso, mas para afastar de seus olhos o sujeito de seu amor.

8.
Estamos perante uma obra que deve obter do leitor a intenção de ser lida como procedimento de uma complicada teia de relações psicológicas entre personagens. A princesa de Clèves é um romance, e daqueles que se tornam inesquecíveis, como afirmava Antoine de Saint-Exupéry. A nossa mochila agradece por mais esse acréscimo.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

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