1.
Nada mais contraditório do que juntar a Veneza-clichê com a morte de seus visitantes — essa triste singularidade, entretanto, foi protagonizada por Richard Wagner, que ali faleceu em 1883, de ataque cardíaco. O mesmo aconteceu com o ser ficcional Gustav von Aschenbach, criatura de Thomas Mann, três décadas depois, mas de uma epidemia. Curiosamente, ambos eram alemães e artistas: Wagner, vulcânico músico e poeta; von Aschenbach, escritor, deprimido, esteta, irritadiço e hipersensível, paranoico.
2.
Em Aschenbach, essa complexa questão essencial é que motiva a novela A morte em Veneza — de que já tratei muito de passagem na coluna de junho de 2020 —, a qual é deflagrada por uma situação crítica constituída pelo enamoramento tardio e platônico de Aschenbach [tinha 60 anos] por um adolescente hospedado no mesmo hotel. Veneza, nos verões dos inícios do século 20, atraía a nobreza e os burgueses ricos de toda Europa, que vinham ocupar os hotéis mais luxuosos. Essa Veneza festiva da novela, porém, é assolada por uma epidemia, que, longe de ser uma gripezinha, matava as pessoas, que morriam como moscas entre as ruelas cobertas de esbranquiçadas lagoas de inúteis desinfetantes. A questão era fugir, sair dali o quanto antes, coisa que Aschenbach não faz, deixando-se ficar para a morte certa, num verdadeiro suicídio. E deixa-se ficar por quê? Por um amor impossível. A morte, enfim, realiza o desejo do escritor.
3.
Desde que fiquei consciente que seria escritor, nunca tive problema com spoilers. Gosto de começar um livro já sabendo como termina; assim, posso acompanhar, passo a passo, as decisões narrativas e estruturais tomadas pelo ficcionista para chegar àquele final, e assim aprender com quem escreve melhor do que eu [uma legião!]. No caso de A morte em Veneza, Thomas Mann, já no título, diz o desfecho. O mesmo acontece em Morte no Nilo, mas há uma diferença: trata-se de uma novela policial, e de Agatha Christie, em que a morte acontece no decorrer da narrativa, e o enredo é para descobrir o assassino. Já em A morte em Veneza, a morte acontece ao final, e não se trata de descobrir quem matou quem, mas de percorrer as razões internas de quem entregou-se de vontade própria ao desenlace fatal. Ambas as obras exigem participação ativa do leitor; no caso de Agatha Christie, o leitor é puxado especialmente pela lógica; em Thomas Mann, pela sensibilidade. E é considerando a sensibilidade que posso ensaiar algumas notas.
4.
Gustav von Aschenbach, personagem, evidencia um conjunto de circunstâncias interiores que, somadas e misturadas em sua atormentada psiquê [“alma”, eu preferiria dizer], é propício a desencadear qualquer catástrofe coletiva, e, inclusivamente, sua desgraça pessoal. Digamos: ele foi para Veneza para morrer, e Thomas Mann dotou-o da sensibilidade necessária para isso. Digamos: onde estiver, Aschenbach leva um universo e suas circunstâncias. Isso já aparece no início, ainda na Alemanha, quando caminha próximo a um cemitério e julga ver um homem que lhe lembrava coisas sinistras; depois, já na gôndola, em Veneza, assusta-se com o aspecto fúnebre das madeiras negras, lustrosas. Mas ele mesmo sabe que sua sensibilidade é incontrolável, e assim divaga após o jantar no hotel:
Cansado, e, contudo, espiritualmente emocionado, distraiu-se, durante a morosa refeição, com coisas abstratas e transcendentais, meditou sobre a misteriosa relação que a legalidade tinha de manter com a individualidade, a fim de nascer a beleza humana; daí chegou aos problemas gerais, e achou, finalmente, que suas descobertas e certas insinuações aparentemente felizes do sonho, as quais, a uma mente sóbria demonstravam ser completamente insípidas e inúteis.
5.
Essa mente nervosa e imaginativa faz com que viva em constante estado de epifania: qualquer objeto, desde os mais corriqueiros até as mais sublimes perspectivas arquitetônicas, faz com que passe por diversos planos de percepção, construindo universos móveis de sensibilidade; isso, no entanto, não o faz feliz, ao contrário: as diferentes estesias que lhe proporcionam a cidade turística deixam-no exausto, não da conhecida síndrome de Stendhal — quem já a experimentou, sabe como é terrível — mas de um possível e ameaçador embotamento.
6.
Tudo se transforma, porém, quando descobre e examina à distância Tadzio, o adolescente, filho de uma refinada família polonesa, e que o conquista pela quase insuportável perfeição de rosto e corpo. Vêm à tona todas as analogias estéticas e mitológicas que habitavam esse homem saturado de cultura e civilização. Ao vê-lo, cede a um pensamento espontâneo, contudo previamente lapidado pelo exercício da análise erudita:
Sobre o colarinho, que, porém, nada tinha de elegante ou combinado com o talhe do terno, repousava a flor da cabeça num encanto incomparável — a cabeça de Eros, com o brilho amarelado do mármore de Paros, com sobrancelhas finas e sérias, têmporas e orelhas cobertas pela entrada retangular dos anéis de cabelo escuro e macio.
7.
[Do ponto de vista da focalização, o autor constrói um prodigioso artifício técnico, que se constitui em contar a história em terceira pessoa, mas com tal adensamento no vórtice psicológico que o leitor se sente perante um texto em primeira pessoa e assim, o pudico Thomas Mann consegue esconder-se, e de maneira brilhante, de uma exposição escandalosa. Mas disso também é feita a literatura, nada mau para os iniciantes meditarem.]
8.
Mas voltando a Tadzio: essa admiração intelectual, aos poucos, ganha cobiçada e desejável carnação humana, deixando von Aschenbach siderado, preso de modo obsessivo à figura flexível que se exercita em jogos juvenis com outros hóspedes. É nesse momento em que come um morango comprado a um ambulante: devorava simbolicamente o corpo de Tadzio, e, junto, infestava-se pela cólera hindu, que começava a avançar pela cidade já pútrida pelo verão e pelo siroco que soprava do norte da África. Daí por diante, é a ladeira para o fim, que já sabemos qual é. Depois de murmurar um inaudível “Amo-te” destinado a Tadzio, revelando a si mesmo a natureza de seu excruciante sentimento, entrega-se ao destino, e morre numa rua sombria.
9.
A morte em Veneza, com o artigo definido, nos leva a uma obra única da literatura, plena de sentidos, acessível às pessoas que não se contentam com uma leitura, nem com duas, à busca da sensibilidade que eventualmente anda esquecida num canto qualquer da alma. Se essa novela não for para a mochila, nenhuma deve ir.