1.
Não há morte literária mais conhecida do que a de Ivan Ilitch, funcionário Judiciário da Rússia Imperial. O autor da proeza, Liev Tolstói, gostava mais de grandes painéis romanescos, mas aqui deu descanso a si mesmo, escrevendo uma narrativa em que retrata o tempo final de um homem mortalmente enfermo. Sabe-se, portanto, que a personagem central morrerá. Aí o gosto de quanto se sabe previamente como um romance termina: começamos a ler, não para o banal prazer da surpresa e, sim, para o prazer de descobrir como a ficção se organiza para chegar a esse fim já sabido.
2.
A estrutura da narrativa é a que chamamos in media res [mais ou menos: “nos meios do assunto”], isto é, não começa no “início” da história, mas, sim, num pouco mais adiante, e Tolstói radicalizou, pois começa quando a personagem já está morta, semelhante ao Brás Cubas. Seus colegas, juízes de uma corte regional, leem a notícia de seu falecimento e, antes de qualquer comentário sobre as belas qualidades de Ilitch, o que sempre se faz, começam logo a discutir quem vai sucedê-lo no posto, e estabelecem hipóteses de futuras promoções, e um deles diz que será ele mesmo o escolhido para o posto, o que já lhe estava prometido há tempos, e essa promoção significará, segundo suas contas, um aumento de 800 rublos.
3.
A propósito, nada mais aleatório e volitivo do que o início de uma história; e porque, muito simples, não existem histórias na vida; a vida é um caos de coisas que se entreveram, se superpõem umas às outras, em que há espaço para coincidências, atos para sempre inexplicáveis. O ficcionista é que inventará essa coisa absurda e artificial que é uma ficção e tentando vender sua mercadoria como se aquilo fosse verdade. Seu único compromisso é com a qualidade estética da obra. Talvez ficasse enfadonho se Tolstói começasse a inventar sua história desde os primeiros sintomas de Ivan, agravando-os no decorrer do tempo. Assim, a estrutura in media res conduz o leitor ao interesse pelo livro, já não para surpreender-se, mas para algo bem mais sofisticado, que será o de descobrir a organização dos materiais narrativos, as ações irresignadas de Ivan que se transformam, aos poucos, na aceitação do inevitável.
4.
A morte de Ivan, ou o percurso em direção a ela, abre um inédito caminho para uma pessoa até então superficial e carreirista, com uma versão burguesa e petrificada da vida. Em outras palavras: é um caminho em que entram em jogo duas questões filosóficas complementares: a moral e a metafísica.
5.
As preocupações morais, até então encarceradas numa visão utilitarista da vida e das outras pessoas, aparecem em cheio quando Ivan se vê, de repente, solitário; sua casa se movimenta sem que ele seja necessário. Sua esposa e sua filha resolvem tratar de suas vidas, vestindo-se bem, passeando e frequentando o teatro; o médico que o assiste sempre aparece rosado, alegre, em plena saúde, com suas palavras previsíveis e frívolas. Em suma: Ivan, na engrenagem de seu conhecido mundo, que o enche de glórias judiciárias e dinheiro, passa a ser supérfluo.
6.
Há um topo literário que os ficcionistas evitam; não sabem o que fazer com ele, como tratá-lo e, por fim, o ignoram. É a dor física. Quanto à dor moral, bem, parece que os ficcionistas não têm outro tema; só a dor moral parece nobre, porque, isto é, implica sofrimento elevado, digno de literatura. A dor física só entra na literatura se for um sintoma concorrente a agravar o conflito ou como deflagrador de ações pontuais (a chamada de um médico, de uma ambulância). Não sei como vocês entendem o assunto, mas esse fenômeno sugere que a dor corporal, na sua brutalidade intrínseca, fechada em si mesma e sem nenhuma idealização, não nos inspira nada; é uma fatalidade, apenas, como um raio que destrói uma casa ou uma enchente que submerge uma cidade.
7.
Tolstói resolveu enfrentar o tabu: “E essa dor, uma dor surda, abafada, não cessava um minuto sequer, parecia receber, em consequência das palavras imprecisas do médico, um sentido novo, mais sério”. Há um momento em que Ivan se dá conta do sem-sentido da dor: “Mas para que esta dor? Seria bom se ela se aquietasse por um instante, ao menos”. “E começou a gemer”. Nada o pode ajudar: “…e sempre a dor, sempre a dor, sempre a angústia, é sempre o mesmo. Sozinho, sente uma angústia terrível, dá vontade de chamar alguém, mas sabe que, em presença de outras pessoas, é pior”.
8.
O criado entra no rol do moralismo: Guerássim é personagem valorizada em excesso pelos leitores e críticos, encarnando o tipo do criado solidário e fiel. Previsível, ele entende o patrão, cuida dele, dá banho, dá remédios. Sim: o moralismo sempre terá sua relevância (aliás, corresponde às ideias solidárias do Tolstói daquele período), mas não possui a originalidade do grande tema da novela, que é de natureza metafísica, e na qual são discutidas as maiores interrogações humanas.
9.
Então, sob o aspecto transcendental, A morte de Ivan Ilitch é obra soberba, é a presença do grande Nada que, de repente, surge no horizonte até então límpido. Para certas pessoas, a vida é um continuum, e, como diz Heidegger, o deslizar para morte é uma indesejável anomalia, e nós acabamos por generalizá-la com abstrações, como “morre-se”; é fácil dizer e todos aceitamos; o problema é aceitar “eu morro”, e essa passagem é mais dolorosa se nunca tivermos pensado nela; assim, a doença mortal sempre será uma surpresa, ou, como dizia Goethe, a morte é uma impossibilidade absoluta que, de um momento para outro, se transforma numa absurda realidade. A morte, como o fim da dor, acaba por ser a solução para Ivan, e o final é um tratado metafísico, mas nem por isso, deixa de ser humano:
“Como é bom e como é simples” — pensou. — “E a dor?” — perguntou em seu íntimo. — “Para onde foi? Ei, onde estás, minha dor?”
Prestou atenção.
“Sim, aqui está ela. Ora, e então? Que venha a dor.”
“E a morte? Onde está?”
Buscou o seu habitual medo da morte e não o encontrou.
Onde ela está? Que morte? Não havia nenhum medo, porque também a morte não existia.
Em lugar da morte, havia luz. — Então é isto! — disse. — Que alegria! […]
— Acabou! — disse alguém por cima dele.
Ele escutou e disse para si: “A morte terminou. Ela não existe mais”. Aspirou ar, deteve-se em meio do suspiro, contraiu-se e morreu.
10.
Nada mais a ser dito. E nós ficamos com a sensação que sempre temos perante uma obra canônica: esse final eu queria para mim, para minha literatura — e para minha vida — e daí que vai para a mochila com toda essa ideia de coisa completa e irretocável.