1.
Paris, belle époque. Santos Dumont triunfava com seus balões, o 14 Bis era um sucesso mundial e os parisienses tentavam acostumar o olhar à imensa e discutível torre. Operetas de Offenbach. Brilho na Champs-Élysées, automóveis rugindo o progresso. Nada que não saibamos. Os turistas atuais querem visitar a Paris daquele tempo, e as agências de viagens insistem nessa imagem glamourizada. Tudo bem, negócios são para render dinheiro. O que os turistas não ficam sabendo é que a mesma belle époque manteve, por debaixo de sua aparência feérica, gangues de assassinos e ladrões; as pessoas com mais poder de escolha circulavam apenas em espaços bem policiados, no perímetro entre a Île de la Cité e o Arco do Triunfo, eventualmente o Bois de Boulogne e suas respectivas laterais. Essas tribos receberam um nome genérico: Apaches, e até hoje ninguém sabe o porquê. Romantizavam-se a si mesmos, com figurinos de panos coloridos, lenços bonitos ao pescoço, bonés xadrez e as famosas camisetas brancas com listras negras horizontais. As mulheres da classe média poetizavam os líderes, jovens e bonitos. Dentre estes, o Cabelo de Anjo de nossa história.
2.
Sem infringir, penso eu, as definições acadêmicas, seria possível pensar num cânone da belle époque, que representa esses intrigantes contrastes urbanos. Dotada de uma enxurrada de leitores, tratava-se de literatura sem maiores preocupações estéticas. Dentre tantos poetas e ficcionistas com esse viés, uma autora de excepcional qualidade se impôs. Usava o pseudônimo de Colette, diminutivo de Nicole. Sua atrevida biografia está a um clique na internet e foi levada ao cinema no filme (2018) do diretor Wash Westmoreland. Não foi nenhuma “santa”, na visão da burguesia conservadora e da Igreja, que, aliás, quis negar-lhe sepultamento católico. Um dado biográfico, contudo, é relevante para avaliar sua fama: viveu longos anos, os finais, no Palais Royal, ali ao lado do Louvre (só atravessar a rua de Rivoli), sendo uma celebridade: visibilizava-se à sua janela, e era apontada e saudada por todos que conheciam sua obra — e, mais ainda, sua vida.
3.
Em 1909 ela publicou um êxito instantâneo: a novela A ingênua libertina, responsável por sucessivas e crescentes edições. Mesmo seus infalíveis detratores reconheceram a excelência de seu texto e do seu aprofundamento psicológico. O título contém uma picante sugestão, reduzida à antinomia entre ingenuidade e libertinagem, o que levava a uma ideia escandalosa: quer dizer que podemos ter, entre nós, meninas que parecem ingênuas, mas que, na verdade, são libertinas? Puro alvoroço e travessura
4.
Colette preferiu utilizar uma focalização onisciente “plena”, isto é, entra nos pensamentos e emoções das personagens que interessam ao enredo. Há uma predominância de Minne, personagem central, de 14–15 anos, mas isso não impede a narradora de revelar o que pensam a mãe, o tio, o primo e mais meia dúzia de personagens — e ainda não se inibe de fazer juízos sobre suas respectivas ações e sobre o próprio andamento da história. Uma decisão técnica perigosa, pois corre-se o risco de, com essa circularidade, reduzir a força do conflito. A competência de Colette, contudo, não deixa que tal aconteça, e o artifício utilizado por ela é a criação de sucessivas e interessantes situações críticas menores, que decorrem da situação crítica inicial, a qual acontece quando Minne, a bem-criada e protegida moça, sempre com a mãe e a criada na cola, encontra, estirado na calçada e dormindo, um belo jovem – apache —, por quem ela se seduz, seduzindo-se, também, por toda a fantasia que cerca a figura e o estilo de vida dele. Identifica-o como sendo o famoso Cabelo de Anjo, dado como preso ou foragido.
5.
Cabelo de Anjo passa a dominar seus pensamentos. Ela se imagina a rainha do bando, imagina-se sua amante, praticando crimes com ele, com isso exasperando seu primo Antoine, que lhe dedica um amor apaixonado. Minne protagoniza uma fuga noturna, buscando Cabelo de Anjo em meio aos lugares mais sórdidos da noite parisiense. Passa mil perigos, é quase abusada, amanhece no átrio de sua casa, suja, embarrada, despenteada, e seu tio médico a examina, constatando que não perdeu a virgindade, ufa! O que poderia ter sido um alívio acabou como um estigma que logo se tornou público: a menina passara a noite fora de casa, hábito de prostitutas. Ficou “mal-falada”, como se dizia até pouco, e seu tio lhe disse que se casasse com o filho dele. Antoine era a única opção decente que lhe restava.
6.
Esse casamento de composição social desencadeou nela um bovarismo à outrance: em dois anos de casamento, três amantes – com a benevolência do marido. A busca do amor significou, aqui, uma rebeldia diante da imposição matrimonial que lhe fizeram. “Um amor, não importa qual, mas um amor verdadeiro, que eu saberei criar com esse amor algo que seja digno apenas de mim!”, digne de moi seule! A atitude assertiva, que exteriormente repete as ações da personagem de Flaubert (com um amante a mais), vem, entretanto, temperada com um componente feminista que não encontramos na deprimida Emma. Minne é capaz de debochar de seus amantes (nunca se deixou fagocitar por nenhum deles) e de debochar de toda uma sociedade fátua, dedicada a festas decadentes — e não só. Ela quer um lugar de mulher que tem suas preferências, e, a cada amante, ela se pergunta: “Mas eu amo, mesmo, esse homem?”. A possibilidade da dúvida era seu domínio de liberdade e, ao mesmo tempo, metonímia da incipiente busca coletiva das mulheres de seu tempo.
7.
A fantasista Minne da adolescência, capaz de apaixonar-se por um abstrato bandido, passa a ser a Minne calculadora, que visa a seu bem e sua realização no plano sentimental e erótico. Sim, por tudo isso, ela desfrutava de liberdade. Numa daquelas festas, ela defende uma mulher de quem falavam mal: “… é seu direito ter amantes. É o direito de toda mulher enganada pela vida!” e, apenas para contextualizar: isso ela disse há mais de um século. Depois do que descrevi da trama, fica ainda muito para os leitores que não gostam de spoilers; mas é impossível não dizer que se trata de um final magnífico (mesmo sabendo que nenhum final é bom). À parte da inédita mensagem de liberdade que nos dá Minne, a obra é escrita com soberana arte literária e não por outra razão que seus leitores só crescem, justificando, assim, a inclusão nesta mochila que, à medida que o tempo passa, se torna cada vez mais leve.