Nunca é demais falar de Lima Barreto. Ninguém discute sua presença no cânone; nenhuma história da literatura brasileira pode ser escrita sem passar por ele. É escritor de inúmeros leitores; e de notável fortuna crítica. Seus romances dificilmente saem de catálogo; alguns de seus contos estão em todas as antologias e entre os melhores da literatura ocidental, como A nova Califórnia e O homem que sabia javanês.
Como se não bastasse, criou no Triste fim de Policarpo Quaresma uma dessas personagens que escapam da ficção para ingressar na mitologia — como aconteceu, por exemplo, com o Dom Quixote de Cervantes. E Policarpo, num certo sentido, atualiza, inverte e até supera o Cavaleiro da Triste Figura, porque não se limita à nostalgia de uma nobreza perdida…
Apesar de tudo isso, não me parece que Lima Barreto venha sendo alçado à altura que merece. Embora seja um escritor canônico, um escritor fundamental, muita gente aponta nele certo desleixo, certa pressa, que priva suas páginas de um melhor acabamento formal e estilístico.
Acredito serem essas questões menores, diante do que se lê, do que está dito nelas. Lima Barreto era um escritor de conteúdos, um escritor de idéias. E atingiu uma profundidade desconcertante, para a sua época e diante de seus pares, na avaliação de alguns problemas brasileiros — particularmente na espinhosa questão da identidade (talvez fosse melhor ‘projeto’) nacional.
Esse é o assunto do Triste fim e do também excelente Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. O romance é narrado pela personagem Augusto Machado, que faz uma espécie de biografia do protagonista. O narrador, mais jovem, tem nele um mentor ético e intelectual.
O livro é em boa parte dialético: Machado reproduz conversas tidas com Gonzaga, quando este discorre sobre males do Brasil. Gonzaga é essencialmente um crítico das elites. A discussão central é precisamente a constituição de uma elite imigrante (ou que tenta se passar por européia), sem vínculo afetivo com os quatro séculos de história nacional e com as camadas populares. Lima Barreto toca, assim, num tema que incomoda e por isso é ainda meio tabu: o da política do branqueamento, o incentivo à imigração de trabalhadores europeus e do Oriente Médio, ostensivamente implantada pelo Estado brasileiro, que excluiu negros e mestiços do mercado de trabalho livre.
No cerne do debate estão naturalmente as teorias raciais, que tiveram incomensurável influência em todas as políticas públicas brasileiras, durante grande parte do século 20 e cujo efeito sentimos até hoje.
O romance flui bem desde o início. Mas cresce, e se agiganta, a partir do ponto em que Gonzaga e o narrador fazem uma viagem ao subúrbio, para o velório de um amigo pobre. O episódio do trem (quando um homem pretensamente culto defende teses racistas mas não sabe explicar porque os pássaros não morrem quando encostam nos fios elétricos) é de uma ironia, de uma acidez simplesmente genial.
E Lima Barreto conclui, tristemente, que aquele modelo de civilização está muito longe de produzir felicidade.
Gonzaga de Sá saiu em 1919. E há diversas edições que se oferecem ao garimpeiro: desde a princeps (da Revista do Brasil) a outras mais recentes, como as da Ediouro, da Garnier e da Ática. Prefiro a da Brasiliense, de 1956, com capa dura, que corresponde ao volume 4 das obras completas organizadas por Francisco de Assis Barbosa, com colaboração de Antônio Houaiss e M. Cavalcanti Proença. Esses exemplares estão a preços muito generosos, entre R$ 10,00 e R$ 25,00.