Não consigo compreender amigos meus — e até mesmo amigas, leitoras boas — que não gostam de José de Alencar. Não consigo entender por que um romance com a trama exuberante de Senhora não seja consensualmente uma obra-prima. Já me disseram que são os bons sentimentos; certa psicologia de telenovela, muito previsível; e a linguagem envelhecida. Os ingleses, felizmente, não são tão duros com Dickens e Jane Austen.
Sobre a questão da língua, têm vantagem os estrangeiros, porque são lidos em tradução. Alencar tem que descer no português novecentista — que hoje, para os brasileiros, soa como o inglês de Shakespeare ou até mesmo o de Chaucer. Talvez por isso não percebam que Iracema foi tão radical, em seu tempo, como o Macunaíma de Mário de Andrade.
Sobre os outros dois argumentos, creio que Alencar tenha ainda uma defesa. Porque ele andou tangenciando certas zonas obscuras. Não só em algumas cenas abusadas de Lucíola: A pata da gazela é talvez a primeira novela brasileira a tratar de uma fantasia erótica — a podolatria. E, n’O guarani, inverteu o estereótipo sexual da mestiçagem brasileira.
Como se sabe, no pensamento comum daquela época, era inconcebível que mulheres brancas pudessem amar índios, negros ou mestiços. Porque não seria amor: mas mero impulso lascivo, imoral. Na cena célebre do fim do romance, Alencar sugere esse contato — cena que Schnitzler imitou, talvez involuntariamente, n’A senhora Beate e seu filho, para tratar do incesto, que é também um tabu.
A maior obra de Alencar, contudo, é um dos seus menores livros: Ubirajara, de 1874 — primeira narrativa brasileira ambientada na pré-história das Américas.
Jaguarê, índio da tribo araguaia, inventa uma nova lança e com ela derrota Pojucã, maior guerreiro tocantim. Conquista, assim, um novo nome: Ubirajara (ou seja, ‘senhor da lança’). Ele, contudo, se apaixona pela filha do cacique tocantim: Araci. Pojucã, segundo o costume, é levado para ser sacrificado na aldeia araguaia. Lá, também segundo o costume, recebe uma nova esposa, uma índia da tribo: Jandira, que amava o antigo Jaguarê — agora renominado Ubirajara.
A partir dessa tensão nuclear se desenvolve uma trama de ciúme, paixões, intrigas, bravura, traições, batalhas. Leitores ocidentais, ou ocidentalizados, tenderão a repetir o velho chavão de que o romance indigenista (se fosse esse um conceito válido) tenta recriar, na selva tropical, a idade média européia. Ignoram, talvez, que índios também amam e têm códigos de honra.
O que realmente interessa no processo de composição do Ubirajara é a integração de elementos de diferentes culturas na configuração de uma cultura nova, arbitrária, singular. A base etnográfica é haurida na dos antigos tupis da costa; mas há traços culturais, por exemplo, dos maués, de grupos jês, de índios norte-americanos. E até uma cena que imita a Odisséia.
Alencar foi, assim, anacronicamente, uma espécie de Borges. Cada vez mais me convenço de que agiu intencionalmente. Ubirajara é uma obra de ficção absoluta, porque os povos tocantim e araguaia nunca existiram, nem mesmo são pseudoetnônimos que encobrem nações reais. A idéia certamente foi criar o mito dos rios Tocantins e Araguaia, que confluem num só. E a metáfora dessa confluência está no fim da novela: Ubirajara se torna cacique das duas nações — e casa com as duas mulheres: Jandira e Araci.
Considerando o público brasileiro do século 19, me parece muito ousado terminar a história com o triunfo da poligamia. Não conheço, aliás, em toda a literatura dita romântica, um final como esse.
Ubirajara tem dezenas de edições. Bastam R$ 5,00 para garimpá-lo.