Sempre desconfiei dos que me dizem não gostar de Jorge Amado. Não porque rejeite a índole pessoal do leitor, como critério estético. Mas porque a maioria dessas opiniões me parecem associadas a um certo desprezo pela chamada cultura popular.
Esse é um dos méritos de Jorge Amado, como escritor e como homem: sua identificação com o patrimônio intelectual e artístico que circula à margem dos meios controlados pela elite.
Num país como o nosso, em que as criações mais originais emergem justamente das camadas menos instruídas, é impossível pensar em cultura com base apenas no parâmetro das letras — tanto quanto seria absurdo discursar sobre literatura oriental excluindo a Índia e a China. Jorge Amado sabia disso. E seus livros são uma exceção.
Pelo menos cinco deles merecem estar em todos os cânones: Terras do sem fim (romance denso sobre a disputa de terras na região do cacau, em que sobressaem as personagens inesquecíveis do coronel Badaró, do jagunço Damião e do trapaceiro João Magalhães); Dona Flor e seus dois maridos (romance e tratado culinário que tem um dos triângulos amorosos mais fascinantes de todos os tempos); Tenda dos milagres (síntese deliciosa do universo popular de Salvador, em que se destaca a personagem mítica de Pedro Arcanjo); Os pastores da noite (de onde saiu a famosa história do compadre de Ogum); e Os velhos marinheiros — reunião de duas novelas geniais, que nada devem às melhores do gênero.
Em A morte e a morte de Quincas Berro D’Água, o narrador se propõe a desvendar o mistério que cerca o falecimento de Joaquim Soares da Cunha, ou Quincas, sobre o qual corriam duas versões: uma, sustentada pela família, fundamentada num atestado de óbito, era a metáfora do digno e pacato funcionário público de outrora; a outra, repetida pelas ruas, transformada em folheto de cordel, falava do bêbado, do jogador, amante de prostitutas e amigo de vagabundos.
Em A completa verdade sobre as discutidas aventuras do comandante Vasco Moscoso de Aragão, capitão-de-longo-curso, trata-se de resolver um dilema: foi ele um grande navegador ou um sórdido farsante? Nos dois primeiros episódios em que se divide o texto, lemos essas biografias antagônicas, que se confrontam na última parte, quando o navio do capitão é o único a resistir a um tremendo vendaval.
As novelas tratam do mesmo assunto: do conflito entre fato e história. Mas não se limitam a ratificar o chavão de que a verdade está no fundo de um poço inacessível. Jorge Amado toma claramente o partido do mito, contra a superstição do conhecimento.
Basta lembrar das emblemáticas cenas finais do Quincas Berro D’Água — o passeio do suposto cadáver pelas ruas de Salvador, antes de desaparecer no naufrágio de um saveiro. Porque elas dizem tudo; e são de uma beleza e de um humor praticamente insuperáveis.
Os velhos marinheiros é de 1961. A Companhia das Letras, sabiamente, mantém até hoje as novelas em catálogo, como faz com toda a obra. Só que em volumes separados: A morte e a morte de Quincas Berro D’Água e Os velhos marinheiros ou o capitão-de-longo-curso. Os garimpeiros, no entanto, poderão achar com pouco esforço o conjunto original, em edições da Martins ou do Círculo do Livro. As da Record também pululam. Salvo no caso da edição princeps, ou no de exemplares autografados, não devem ser aceitos preços acima de R$ 12. Há muita oferta em bom estado por bem menos.