Se um leitor distraído tomasse casualmente um romance de Ismail Kadaré, sem ter nenhuma informação prévia sobre o livro ou o autor, provavelmente não diria que a ação se passasse num país da Europa. E a Albânia é mesmo um país muito estranho, a olhos excessivamente ocidentais.
Dizem os entendidos que o isolamento geográfico (o território lá é muito montanhoso e acidentado) condicionou o desenvolvimento de uma cultura singular, e de feição arcaica. Aliás, prova disso é o próprio idioma albanês, que constitui um membro antigo e isolado, no conjunto indo-europeu, sem nenhuma afinidade próxima com outros subgrupos lingüísticos.
Uma das características fundamentais dos romances de Kadaré é um foco narrativo que tira proveito justamente desse, digamos, exotismo da cultura albanesa. Nos seus dois livros mais conhecidos (Abril despedaçado e Dossiê H, publicados aqui pela Companhia das Letras), o narrador tem uma perspectiva exógena, seja pelo olho de personagens estrangeiras (como em Dossiê H), ou por albaneses “educados” da cidade (como em Abril despedaçado).
Esse mesmo princípio já estava presente em O general do exército morto, livro que forma com os outros dois a tríade fundamental da ficção de Kadaré.
O argumento do romance é simplesmente genial: após a Segunda Guerra, o governo da Itália (cujo exército, na Albânia, sofrera grande revés) envia uma comitiva encabeçada por um general e um padre para resgatar os corpos dos soldados mortos.
As situações que essa busca enseja, sempre impressionantes, têm atmosferas das mais variadas: às vezes cômicas (quando os italianos têm que esperar o fim de um campeonato de futebol para poder escavar no campo, construído sobre um antigo cemitério de guerra); outras vezes heróicas (cena do albanês que lutou sozinho, durante horas, contra todo um pelotão inimigo); dramáticas também (caso de um desertor italiano que se torna voluntariamente servo de uma família camponesa e aceita passivamente ser chamado de “Soldado”); e sobretudo trágicas (como no núcleo central do romance: a vingança de uma anciã albanesa que perde os filhos e mata um oficial italiano, escondendo o cadáver diante da própria casa).
É através das personagens estrangeiras — o general e o padre — que Ismail Kadaré provoca no leitor a percepção profunda do contraste existente entre a civilização européia e a “barbárie” albanesa (segundo a óptica ocidental), contrapondo inclusive duas noções muito distintas de belicosidade: a política ou estatal (típica do ocidente civilizado, abstrata, impessoal e moralmente aceitável se motivada por altos interesses “coletivos”) e a antropológica, vinculada à honra, que é subjetiva, imperativa e autojustificável — traço persistente na personalidade milenar do estranho povo da Albânia.
Nesse sentido, é espetacular, como síntese desse contraste conceitual, a cena do encontro, inoportuno e inconveniente, entre o general e a anciã albanesa a que já me referi. Me parece, este, o ponto alto do romance — que é ainda uma reflexão sobre o significado da morte e a identidade dos mortos.
O general do exército morto é também uma das criações mais notáveis e originais no gênero do romance de guerra, tão raro no Brasil. Traduzido da versão francesa, foi aqui publicado pela editora Objetiva, em 2004, e já se encontra fora de catálogo e das grandes redes livreiras. Nos sebos, é possível ainda garimpá-lo; e R$ 20,00 é um preço muito justo.