Um jogo muito interessante, para quem gosta de brincar com a literatura, consiste em encontrar um duplo para cada grande escritor do cânone universal. Embora sejam muito originais, as letras brasileiras também se prestam a esse inocente passatempo. Por exemplo: Jorge de Lima pode ser ao mesmo tempo nosso Camões e nosso Dante; Nelson Rodrigues, o das tragédias, é o nosso Shakespeare; o do romance, nosso Dostoiévski. Mário de Andrade e Guimarães Rosa, fundidos, dão um James Joyce bem melhor que o original. Para o posto de Balzac temos Josué Montello. E, para o de Flaubert, Otto Lara Resende.
Na verdade, Flaubert foi só um precursor, o esboço do que viria a ser Otto Lara. Ambos compartilham da obsessão da frase; a escolha da palavra precisa, que dê conta das mínimas nuances do sentido e que caia entre as outras sem perturbar a límpida sonoridade da sentença.
Mas entre eles há duas importantes diferenças: o francês teve mais fama; o brasileiro, mais rigor. Flaubert viveu 58 anos e escreveu sete romances, sendo que o último deles, inacabado, pesa quase meio quilo. O nosso Otto, aos 70 anos, ainda continuava lapidando o mesmo livro, seu romance único: O braço direito.
Estamos na cidade ficcional de Lagedo, no fundo interior das Minas Gerais. Como acontece em muitas das cidades literárias de Minas, há em Lagedo um grande casarão colonial, já meio arruinado, onde pulsam todas as tensões que resumem a condição humana. Nele funciona o asilo dos órfãos da Misericórdia. E é onde vive, num exílio voluntário, o zelador.
O romance é uma espécie de diário que o zelador mantém, constituído por quatro cadernos. O problema central, com que ele abre a narrativa, é a ameaça de venda do sobrado e subseqüente fim do asilo — que coincidiria com o fim da sua própria existência. O zelador destila todo o seu ódio contra o provedor, a quem interessa a venda do prédio, à medida que traça um perfil de todos os habitantes de Lagedo, já que toda a cidade parece orbitar em torno do asilo.
É quando entramos no casarão e começamos lentamente a conhecer os seus terrores: miséria, fome, abandono, maus-tratos. Há uma surda e crescente revolta entre os órfãos. Peças de arte sacra e livros raros vão desaparecendo do rico acervo deixado pelo fundador da casa. Os maçons atacam o padre e os católicos reagem. Um dos internos morre, em circunstâncias um tanto obscuras. E há histórias de fuga, estupros, tortura, assassinatos.
Poucos romances vasculharam tanto e tão profundamente a nossa formação católica e os fundamentos mineiros da brasilidade. Mas o livro vai além, muito além — porque a prosa, as frases, os períodos de Otto Lara são um espetáculo à parte.
E é com essa prosa magistral e sutilíssima que Otto vai trazendo à tona, aos poucos, o verdadeiro caráter do seu protagonista, braço direito da Igreja no combate ao demônio — seguramente uma das personagens mais complexas, mais contraditórias da literatura ocidental.
O braço direito saiu em 1963 pela Editora do Autor. Interminavelmente reescrito desde então, teve depois edições da Sabiá e do Círculo do Livro. A Companhia das Letras fez a edição definitiva, em 1993, trabalho excepcional de Ana Miranda, que cotejou e discutiu com o próprio Otto as diversas versões do romance. É, naturalmente, a que recomendo; e que está nos sebos por uns R$ 12,00.