O albatroz

Romance de José Geraldo Vieira é a saga de uma família de varões militares que começa na revolta de Canudos
José Geraldo Vieira, autor de “O albatroz”
01/12/2012

Em janeiro de 1950, as edições Saraiva, que em julho de 1948 iniciavam uma célebre coleção mensal para assinantes, tiveram a ousadia de lançar o número 19 dessa série com uma tiragem estupenda de 45 mil exemplares. Mesmo para a época (época em que se liam romances), era uma cifra assustadora. E não se tratava de nenhum clássico universal, de nenhuma obra de cunho apelativo ou escrita por celebridade estrangeira: era apenas um romance brasileiro, intitulado A ladeira da memória.

É inacreditável, hoje, que José Geraldo Vieira — esse romancista que nos anos 1950 tinha um horizonte de 45 mil leitores — esteja virtualmente esquecido. Dizem muitos que é o tempo o único crítico literário eficaz: Zé Geraldo mostra que a afirmação é falsa.

Desde que estreou no romance, em 1931, com A mulher que fugiu de Sodoma, Zé Geraldo se apartou completamente das linhagens principais do romance brasileiro. Nessa época, a narrativa intimista já dominava a cena. Zé Geraldo era também um narrador intimista, psicologista. Mas não seguiu a vertente machadiana, não buscou as pequenas tragédias da vida cotidiana e comezinha. Pelo contrário, seu senso de tragédia tinha proporções helênicas; e seus temas ultrapassavam as fronteiras nacionais.

Escritor erudito, sofisticado, dono de uma impressionante capacidade de estabelecer sutis analogias intertextuais, seus admiradores dificilmente convergirão a respeito de que livro seu é a obra-prima. Meu preferido é O Albatroz, também originalmente publicado na coleção Saraiva, em 1952.

O romance é a saga de uma família de varões militares que começa na revolta de Canudos, passa pelos movimentos tenentistas e culmina na segunda grande guerra.

O elemento trágico se anuncia logo, quando o primeiro desses varões manda construir um mausoléu, com oito sarcófagos, no elegante cemitério carioca de São João Batista — e um abstrato Destino se sobrepõe a essa vontade meramente humana (exatamente como em Eurípedes, Sófocles ou Ésquilo), determinando que o referido mausoléu jamais seja inaugurado.

Assim, embora a morte faça quatro vítimas sucessivas, nenhum corpo chega ao cemitério: no retorno de Canudos, o avô contrai varíola e seu despojo é lançado ao mar; o pai morre na explosão do encouraçado Aquidabã; o filho, rebelde, desaparece num desastre de avião, durante o vôo clandestino que o traria de volta ao Brasil; e o neto, morto na tomada de Monte Castelo, passa dois meses insepulto antes de a tropa dos padioleiros encontrar seu imprestável cadáver.

Esses acontecimentos, todavia, quase não são narrados objetivamente. O ponto de vista dominante é o da personagem Virgínia, que perde sogro, marido, filho e neto; que pretendeu ser um misto de Ifigênia e Electra; mas termina compartilhando o destino de Hécuba.

Não é a ela, no entanto, a que o título alude; mas a Fernando, o neto, o último dos quatro varões que o mausoléu familiar se recusa a receber. É através do destino dessa personagem — e das expectativas de Virgínia em relação a ele — que o romance atinge o ápice da catarse trágica. Rico, culto, sustentado pela avó que praticamente o isola numa propriedade palaciana e paradisíaca em frente ao mar (que foi o verdadeiro túmulo da família), Fernando é exatamente como o albatroz do famoso poema de Baudelaire: que voa alto, magnificamente; mas, no chão, tropeça nas próprias pernas.

Com R$ 10,00 é fácil garimpar O albatroz, seja na mencionada edição da Saraiva (1952) ou nas posteriores, da Martins ou do Clube do Livro.

José Geraldo Vieira
Escritor, tradutor e crítico literário, nasceu no Rio de Janeiro (RJ) em 1897 e faleceu na capital paulista em 1977. Estreou na literatura em 1919 com A mulher que fugiu de Sodoma (poemas).
Alberto Mussa

Nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. É autor do romance O senhor do lado esquerdo, vencedor do Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional e eleito pela Academia Brasileira de Letras o melhor livro de ficção publicado em 2011.

Rascunho