Impossível falar de Joaquim Manuel de Macedo e não lembrar de A moreninha. Foi seu primeiro romance publicado — romance que o tornou célebre e deu o tom de toda a sua ficção posterior.
Macedo foi um escritor essencialmente carioca. Embora não tenha se ocupado dos escravos e dos mais pobres, havemos de convir que uma personagem “moreninha” tem um significado muito expressivo, se contraposta a tantas musas louras e pálidas que apaixonavam os poetas de então.
O senso nativista do romance não se esgota nesse detalhe: temos a descrição do quadro natural e do quadro de costumes; Carolina, a moreninha, parece reproduzir o enredo amoroso de uma suposta lenda tupi; e há em todo o texto uma velada malícia muito brasileira (como na cena em que o protagonista Augusto entra no quarto das moças e se esconde debaixo da cama).
Essas travessuras, contudo, não tiram a pureza e a candura das personagens. Aliás, quando releio os romances de Macedo, tenho a sensação de estar diante das obras mais surrealistas — para não dizer inverossímeis — da literatura brasileira: é muita moça virgem, muita mulher fiel, muito amor eterno, para um cenário como o Rio de Janeiro.
Por isso é que o grande Macedo, para mim, não é dos romances, mas o da crônica urbana. E, nesse plano, poucos livros do século 19 foram tão saborosos como as Memórias da Rua do Ouvidor.
O livro começa com uma tese brilhante: a de que o primeiro nome da rua marcou definitivamente seu caráter. Com efeito, a Rua do Ouvidor foi inicialmente conhecida como a do desvio do mar. Era, na prática, um desvio da Rua Direita (atual Primeiro de Março). A rua, assim, nasceu para o desvio, para o desvio do que é direito — enfim, nasceu para ser o símbolo e a síntese espiritual da cidade (e essa última afirmação já é, naturalmente, um pouco minha).
O relato é meio ficcional, meio histórico. Macedo diz que colheu tradições em “velhos manuscritos” que só poderiam existir na biblioteca de Jorge Luis Borges.
Mas as histórias são curiosíssimas, como a de Aleixo Manuel — morador célebre que por certo tempo deu seu próprio nome à rua. Tendo integrado uma das expedições punitivas contra os tamoios, Aleixo capturou uma índia mestiça, filha de um francês, e se envolveu numa disputa com dois fidalgos raptores de mulheres.
Há o caso do ajudante de sala do vice-rei, que tentou desonrar uma menina e foi confundido com um lobisomem. Há o do marquês do Lavradio e do tenente Amotinado — um dos mais antigos capoeiras do Rio de Janeiro. Segundo Macedo, o marquês andava à noite, disfarçado, sob proteção do capoeira, para seduzir mulheres — até tentar entrar na casa do próprio tenente. Essa história, aliás, lembra muito as de Harun al-Rachid, nas Mil e uma noites.
Há casos ligados à inconfidência mineira e à personagem do Belo Senhor, malandro que foi preso por falsificar um testamento e que fugiu da cadeia falsificando o próprio alvará de soltura. Como se vê, o Rio das Memórias é bem diferente do dos romances.
As Memórias da Rua do Ouvidor foram publicadas por muitas casas editoriais. Os preços, por isso, variam muito. A edição da Ediouro é a mais barata, quase sempre inferior a R$ 10,00. Por R$ 50,00 em média se adquire um exemplar da Companhia Editora Nacional, integrante da famosa e cara coleção Brasiliana. Nesse caso, é melhor comprar todo o Macedo cronista, reunida pela Casa da Palavra em O Rio de Joaquim Manoel de Macedo, que ainda está em catálogo.