Em 1979, com A vida verdadeira de Domingos Xavier, de Luandino Vieira, a editora Ática inaugurava um dos mais importantes projetos da história editorial brasileira. Falo da coleção Autores africanos, que teve 27 volumes e se encerrou, lastimavelmente, no início dos anos 90.
Para quem compreende a literatura como um método de viver muitas vidas no tempo de uma, é desnecessário explicar por que é tão importante transpor as barreiras impostas pela nossa etnocentricidade.
Embora não tenha sido pioneira (a Nova Fronteira, por exemplo, já havia publicado meia dúzia de romances africanos), o mérito da Ática foi ter criado uma coleção relativamente duradoura, com identidade própria, devido a um belíssimo projeto gráfico.
Apesar de ser um número ainda muito pequeno para a diversidade literária e cultural do continente, esses 27 títulos traçam um perfil bem razoável da produção africana da segunda metade do século 20, escrita nas línguas coloniais. Boa parte desses livros é verdadeira obra-prima.
Uma delas é O mundo se despedaça, de Chinua Achebe (que teve recentemente nova edição pela Companhia das Letras). Difícil descrever o impacto desse romance, que desce às profundezas do universo ibo, uma das etnias mais populosas da Nigéria. Os livros de Achebe tratam da presença destrutiva do colonizador nas sociedades tradicionais — ao mesmo tempo em que as analisa sem nenhuma espécie de idealização, diria mesmo sem nenhum pudor.
A experiência é fascinante: porque estão ali toda a complexidade, toda a beleza e todas as contradições do pensamento ibo, com suas intrincadas redes hierárquicas, suas sociedades secretas, seus espíritos cobertos de ráfia, suas misteriosas cavernas sagradas, suas florestas malditas, seus terríveis sacrifícios.
Tema recorrente, o conflito de civilizações reaparece em Aventura ambígua, de Cheikh Hamidou Kane, novela muita densa e muita bela, que narra o dilema de um jovem senegalês, educado na rígida tradição muçulmana, ao ter contato com a cultura ocidental.
Numa vertente irônica, essa mesma matéria está em dois bons livros: A ordem de pagamento, do também senegalês Sembène Ousmane, que ridiculariza o espírito burocrático europeu; e Mestre Tamoda, de Uanhenga Xitu, sobre a obsessão de um velho angolano em falar um português sofisticado.
O mesmo volume de Mestre Tamoda traz a instigante novela Kahitu — história de um paralítico que seduz a moça mais bonita do lugar, narrada de um ponto de vista tipicamente quimbundo (etnia dominante na região de Luanda, que muito influiu na cultura brasileira).
A tradição oral é a base de outra obra-prima: Sundjata, de Djibril Tamsir Niane, por onde penetramos na magnífica mitologia heroica dos mandingas, senhores do antigo império do Mali. Outro autor que bebe em fontes do passado (no caso, a herança literária árabe) é o tunisiano Chems Nadir, com os contos de O astrolábio do mar, coletânea que tem pelo menos três pérolas.
As lutas da independência e a denúncia das instituições coloniais são outro tema importante. Muitos livros tratam disso, como o referido A vida verdadeira de Domingos Xavier (história de um jovem que morre resistindo à tortura), Sagrada esperança (reunião de poemas de Agostinho Neto) e Yaka, de Pepetela (que vem sendo publicado pela Leya), saga de uma família de colonos portugueses vinculada à lenda de uma misteriosa máscara.
Creio ser impossível encontrar a coleção completa. E exemplares isolados cada dia são mais raros. Às vezes podem custar R$ 10,00; outras, chegam a R$ 60,00.