A menina morta

A narrativa de Cornélio Pena tem um clima de mistério e tragédia, embora os fatos pareçam sempre muito triviais
Cornélio Penna, autor de “A menina morta”
01/08/2013

Apesar de ser uma expressão muito usada e conhecida no âmbito da crítica literária, poucas pessoas já definiram em que consiste — e como se constitui — o cânone de uma literatura. Para alguns, quem forma o cânone são as academias; para outros, é a universidade; para outros tantos, é o mercado editorial; uma minoria crê que sejam as câmaras municipais, quando dão nome de escritores a logradouros públicos. Pessoalmente, me inclino pelo critério matemático: o cânone geral é o conjunto resultante da interseção de todos os demais.

Sob esse ponto de vista, um dos romancistas brasileiros mais absurdamente excluídos do cânone (pelo esquecimento dos nossos grandes editores) é o fluminense Cornélio Pena, nascido e falecido em Petrópolis, também pintor, gravador e desenhista.

Dizem que foi o criador do nosso romance psicológico. Sobre isso, não tenho muita opinião. Sei é que escreveu quatro romances esplêndidos: Fronteira (1936); Dois romances de Nico Horta (1939); Repouso(1948); e A menina morta (1954). Têm todos esses livros uma obscuridade impressionante, um modo muito singular de descrever ações e caracterizar personagens, tudo com uma imprecisão intencional, dolosa, que prende e fascina. A menina morta, o último deles, é seguramente o maior.

Estamos na fazenda do Grotão, vale do Paraíba, província do Rio de Janeiro, durante o século 19. O romance começa com a morte da menina, filha de sinhá Mariana e do comendador. O pai manda pintar o retrato da filha morta; e pendura esse quadro numa das paredes da casa-grande.

O retrato da menina, então, impõe um traço trágico ao destino de todos os habitantes da fazenda, inclusive escravos. A narrativa tem um clima de mistério e tragédia, embora os fatos pareçam sempre muito triviais. Há locais proibidos, como o quarto de Mariana; pessoas que vivem reclusas e quase esquecidas, como a ama do comendador; fatos do passado sobre os quais ninguém pode falar; terríveis acidentes, até mesmo mortes, que não têm explicação.

O texto é uma sucessão de cenas, de movimentos de personagens em torno dos fatos marcantes da história do Grotão: o enterro da menina na capela da vila; a chegada de sua irmã, Carlota; a misteriosa morte do escravo Florêncio; o desaparecimento súbito e inexplicável da sinhá Mariana; o noivado de Carlota; até os eventos finais: a morte do comendador e do irmão caçula; o abandono da fazenda pelos hóspedes e agregados; alforria dos escravos; caos econômico; retorno da doente Mariana; a vida solitária de Carlota, que então se identifica com a menina morta.

O romance trata externamente da queda de uma casa senhorial e escravocrata; mas na verdade é a história espiritual de Carlota, de sua transição entre a inocência e a idade adulta, quando adquire a consciência do Mal. Isso é simbolizado, no livro, pela descoberta do tronco onde penam os escravos. Carlota sente raiva da irmãzinha morta, que amava os cativos e pedia por eles. Sente raiva, portanto, de uma inocência perdida, da pureza e da bondade que desapareceram com a irmã.

Um dos momentos inesquecíveis do romance (hoje politicamente incorretíssimo) é quando a escrava Libânia rasga a própria carta de alforria, para não se libertar da lembrança da menina.

A menina morta pode ser lida no volume da Aguilar que reúne os romances completos de Cornélio Pena. Essa edição gira em torno de R$ 100,00. As outras duas edições isoladas, da José Olympio (1954 e 1970), por sua extrema raridade, custam quase a mesma coisa.

Alberto Mussa

Nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. É autor do romance O senhor do lado esquerdo, vencedor do Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional e eleito pela Academia Brasileira de Letras o melhor livro de ficção publicado em 2011.

Rascunho