Não me lembro se já disse em alguma outra coluna que um grande livro pode às vezes obscurecer uma grande obra, reduzindo seu autor a um escritor de um livro só. Para a massa dos leitores, é o que acontece com Scott, Cooper, Stendhal, Hugo, Melville, Hawthorne, Zola, Stevenson, Conrad. Os exemplos são inúmeros. Na literatura brasileira, um caso típico é o de Antônio Callado.
Falar em Callado é falar em Quarup. Não há dúvida de que seja um romance magistral, um marco, uma obra-prima. A excelência do livro, contudo, ofusca o próprio Antônio, um dos maiores e mais completos escritores que o Brasil já teve. Mas que, lembrado apenas por um único livro, não conquistou esse reconhecimento.
Callado escreveu uma das mais importantes reportagens da história da literatura brasileira: Esqueleto na Lagoa Verde, que trata do misterioso desaparecimento de um explorador inglês enquanto procurava uma lendária cidade perdida nos nossos sertões.
Foi ainda um importante dramaturgo, autor de peças memoráveis, de forte conteúdo político, como Frankel (que denuncia o genocídio indígena); ou de fundo histórico, como A cidade assassinada (sobre a personagem mítica de João Ramalho).
Sobre os romances, não é absurdo afirmar que são todos ótimos, quando não esplêndidos. Callado esbanjou nesses livros toda a sua diversidade técnica e amplitude temática.
É o que temos, por exemplo, em A madona de cedro, fascinante narrativa sobre o arrependimento e a redenção, centrada num homem que ajuda uma quadrilha a roubar uma valiosa peça de arte sacra barroca. Ou Reflexos do baile, romance plurilíngue, de estirpe experimental, que traça um múltiplo perfil ideológico da ditadura brasileira.
O livro que hoje nos concerne, A expedição Montaigne, trata de um dos temas caros a Callado: os indígenas e sua relação com a sociedade neobrasileira.
Ipavu, ou Paiap, é um camaiurá que está numa prisão (ou reformatório indígena) do interior mineiro. A ação própria do romance começa quando o jornalista Vicentino Brandão, vendo que nos porões do reformatório existia um antigo tronco, imaginando que ainda fosse usado como instrumento de tortura, cria grande escândalo e invade o lugar, libertando os internos.
Acompanhado por Ipavu, Vicentino então planeja percorrer o Brasil, na direção do Xingu, arregimentando indígenas para formar um exército, que lutará para retomar o território (e o poder) da mão dos “brancos”.
A partir desse núcleo, Callado expõe uma série de ridículas contradições da atitude ocidental em relação aos índios. Vicentino é um idealista ingênuo, que se crê seguidor do pensamento de Montaigne. Ipavu, ao mesmo tempo que deseja voltar a sua aldeia, para rever a harpia Uiruçu, animal de estimação coletivo, tem saudade da civilização, simbolizada (ou sintetizada) na cerveja. Há ainda outra personagem interessante: o pajé camaiurá Ieropé, defensor radical da tradição, mas que cai em descrédito por se recusar a usar penicilina e deixar morrer uma moça trumai.
Pelo estilo da linguagem, pela sucessão de pontos de vista, o tom do livro é cômico, apesar do assunto. Há cenas muito marcantes, e que quase resumem o romance, como a da revolta de Ipavu, que se recusa a continuar sendo o carregador da expedição, enquanto Vicentino apenas dá ordens. Mas é particularmente o final que torna a narrativa inesquecível, quando Vicentino Beirão cai na sua própria armadilha e se depara com um destino trágico e inimaginável.
A expedição Montaigne foi publicada originalmente em 1982 pela Nova Fronteira, que continuou a reeditá-la ou reimprimi-la. Exemplares em muito bom estado podem custar apenas R$ 10,00.