O ator carioca César Cardadeiro nasceu em 1990 e passou boa parte da infância em Portugal. Na televisão, ficou conhecido por haver interpretado dois grandes personagens literários brasileiros: o menino Pedrinho, do seriado Sítio do picapau amarelo, adaptado das histórias de Monteiro Lobato; e o jovem Bentinho de Dom Casmurro, na microssérie Capitu, dirigida por Luiz Fernando Carvalho para a Rede Globo, em 2008. No cinema, pode ser visto no filme Divã, inspirado no livro homônimo de Martha Medeiros, e atualmente integra os elencos de A suprema felicidade, novo longa-metragem de Arnaldo Jabor, e Nosso lar, baseado na obra de Chico Xavier. Também dublou a voz do Gurincrível Bochecha, no filme de animação Os incríveis, da Disney/Pixar. No teatro, esteve na peça Theatro das Virtudes, dirigida por Sura Berditchevsky. Além disso, Cardadeiro é fotógrafo e produtor. Mora no Rio de Janeiro.
• Na infância, qual foi seu primeiro contato marcante com a palavra escrita? E de que forma a literatura surgiu na sua vida?
O menino do dedo verde, de Maurice Druon. Esse livrinho é fantástico. Quando tinha nove anos e preferia colecionar coisas velhas e ler tirinhas de jornal, avó Margarida veio com ar de mistério e me entregou um embrulho falando que aquilo era algo muito importante, que eu deveria estar preparado para abri-lo. Não o abri na hora. Almocei, dormi um pouquinho à tarde e rasguei o embrulho quando o sol estava se pondo. Fiquei maravilhado com o presente e comecei a lê-lo na mesma hora. O menino do dedo verde é um livro especial por si só, recheado de cuidados e carinhos e, adicionado às circunstâncias em que o ganhei, vira um livro mágico. Sinceramente, graças a Tistu (o protagonista da história), ganhei um novo olhar, ou, quem sabe, entendi o que seria a literatura em minha vida. Outra leitura marcante, que vale ser lembrada, foi A filosofia na alcova, do Marquês de Sade, que li quando tinha 14 anos, escondido de minha mãe. Quando ela descobriu, ficou chocada. Mãe Elizabeth sempre lia para mim antes de dormir, principalmente aos domingos, quando me “obrigava” a cochilar de tarde. Era muito confortável ouvir histórias com a sua voz. Eu ficava encantado, me imaginava nas aventuras contadas. Às vezes, eram livros pequenininhos cheios de desenhos e bichos que falavam. Em outras, contos cheios de sentimento, tão envolventes que faziam o tempo passar rápido como um raio e transformavam meus sonhos em fantasias inesquecíveis. Lembro que, da primeira vez que ouvi um conto dos irmãos Grimm, tive um sonho tão maluco que fiquei falando dele por uma semana. Com o tempo, a mãe começou a ler livros maiores, meio complicados para uma criança de sete, oito anos, mas toda a complicação era desfeita após a leitura, quando conversávamos um pouco sobre eles. Ela me guiava ao mesmo tempo em que me deixava livre para escolher a próxima história. Isso me ajudou a pegar gosto pelas letras. Mais tarde, comecei a ler para ela os finais dos livros grandes, quando já estava completamente envolvido, e assim fui me acostumando a ler sozinho.
• Muita gente cita Monteiro Lobato ao recordar suas primeiras leituras. Interpretar o Pedrinho fez com que você, ainda menino, se interessasse mais pela literatura? E viver o Bentinho, em Capitu, mudou a sua maneira de se relacionar com ela?
Não é certo falar que Capitu mudou minha relação com a literatura. Acho mais correto dizer que esse trabalho confirmou o que ela é em minha vida. Literatura é algo “simples”. Para entendê-la e tê-la por completo, é preciso sentir. É querer experimentar toda a vida que o autor lhe propõe, toda loucura, todo amor, e viver aquilo. Interpretei Pedrinho dos 11 aos 14 anos, período muito importante na vida de qualquer pessoa. Tive a oportunidade de “viver” o Brasil e o mundo de Monteiro Lobato enquanto me descobria e formava a minha primeira opinião do viver. Fazendo o Sítio do picapau amarelo descobri muitos autores importantes. Além da convivência que tinha com grandes atores/artistas, ganhei muitos livros deles, muitos CDs, muitas dicas, além das riquíssimas histórias de vida que me contavam. “Meu” Pedrinho não me trouxe apenas a literatura. Com ela veio o desejo de sentir cada palavra, cada desenho, cada música.
• Que espaço a literatura ocupa no seu dia-a-dia e no seu método de trabalho?
Às vezes fico um, dois meses sem tocar em um livro grande. Geralmente isso acontece após um trabalho que exige muito de mim, ou quando me decepciono com alguma leitura. Mas estou sempre lendo algo pela internet. Gosto de ficar bisbilhotando blogs ou ler contos e poemas perdidos (um dos blogs que sempre visito é este: www.doomsdayhocuspocus.blogspot.com). Às vezes, entro no Domínio público e fico por lá mesmo. Tem crescido em mim o hábito de ir à Biblioteca Nacional. Sempre entro em sebos à procura de literatura “velhanova”. Sem contar que adorava colecionar HQs e mangás — hoje não tenho gostado muito das opções e deixo esse prazer meio de lado. Além disso, sempre gostei e “me obriguei” a ler peças de teatro. Tento ler ao menos uma ou duas por mês. E, como ator e (se me permite) artista, eu aproveito tudo. Boa parte do meu trabalho é a pesquisa de sentimentos e sentidos, e as palavras são algumas das minhas principais ferramentas nesta pesquisa. Também tive a sorte de fazer bons trabalhos baseados em obras literárias. De cara, um dos meus primeiros trabalhos na televisão foi uma série da TV Futura chamada Livros animados, onde contávamos uma história de livrinho infantil por episódio. Em seguida, fiz o Sítio e a microssérie Capitu, baseada no Dom Casmurro, de Machado de Assis. Entre as poucas peças que fiz está uma chamada Theatro das virtudes, dirigida e escrita por Sura Berditchevsky, baseada em contos do livro Livros animados.
• Você possui uma rotina de leituras? Como escolhe os livros que lê?
Costumo ler pela manhã, antes de sair para trabalhar ou fazer qualquer outra coisa, e à noite, após o trabalho. Tenho mania de ler na casa dos outros ou quando não posso ler. Por exemplo: lia muito mais quando estudava e ficava com os livros escondidos embaixo da carteira durante as aulas. Gosto de escolher sem querer o livro que leio, sem ler resumo, acho que assim tudo fica mais emocionante. Costumo ler quando estou pensando muito numa coisa só, para mudar de assunto ou esquecer a vida. Fujo do compromisso de ler, gosto de desejar o livro.
• Você percebe na literatura uma função definida ou mesmo prática?
Leio porque quero me conhecer e entender pontos de vista diferentes. Com a leitura, deixamos de ser ignorantes de nós mesmos. Literatura é uma das formas de nos proteger do “neocoletivismo”. Pois nem tudo que nos direciona é a verdade e o único caminho, é preciso conhecer outras idéias e sentidos. Um exemplo da importância da literatura é a forma como construo meus personagens. Todos são simplesmente baseados em emoções e imagens que me vêm à cabeça durante a leitura do texto, ou em algum referencial de pesquisa. Não procuro me aprofundar mais que isso, pois toda a individualidade do personagem surge a partir desse ponto.
• Como você reconhece a boa literatura?
Boa literatura é a que não te obriga a nada. É a aberta, que aceita suas falhas e se apresenta sem medo. A boa literatura é simples e sem grandes complicações, gosta de se mostrar e não omite seus subtextos. Ela existe quando desejamos aquela história, quando não força(mos) a barra. Desperta nossos sentidos e nos transporta para onde for.
• Que tipo de literatura lhe parece absolutamente imprestável?
A literatura pode ser ou se tornar imprestável. O sistema arcaico dos colégios tem inutilizado Machado de Assis, Monteiro Lobato, Aluísio Azevedo e Martins Pena, entre outros ricos escritores nacionais, de forma desastrosa. Graças à sua antiquada maneira de apresentar e impor a leitura de suas obras, fazendo muitos adolescentes se desinteressarem pela literatura nacional. Quando lemos por obrigação, mesmo que haja entendimento, transformamos a leitura em algo desagradável e nos fechamos aos sentimentos e subtextos que o autor nos propõe. A leitura se torna algo raso, quase inútil. Imprestável de nascença é a literatura dogmática, dominadora. A que fecha o cerco e não deixa saída. Determinista, mentirosa, “cheia da razão”. É a literatura vazia, oca e perigosa, como um santinho do pau oco.
• Que grande autor você nunca leu ou mesmo se recusa a ler? Você alimenta antipatias literárias?
Paulo Coelho, com seu ar de superioridade e suas histórias encantadoramente óbvias e secas, é insuportável. Uma vez comecei a ler O alquimista. Em 15 minutos de leitura, meu cérebro ficou tão vazio que fui alugar um filme e destruir de vez aquele nada imprestável que o livro me trouxe.
• Que personagem mais o acompanha vida afora?
Além do Pedrinho, com o seu bodoque, lembro sempre do derrotado Antenor, do texto O homem de cabeça de papelão, de João do Rio — e tento fugir da cabeça de papelão. (http://www.releituras.com/joaodorio_homem.asp)
• Que livro os brasileiros deveriam ler urgentemente?
O brasileiro tem se deixado de lado. Não nos conhecemos mais. Vivemos cercados de imagens, textos e culturas exteriores e nem notamos. Estamos fragilizados por toda essa cultura que vem de fora, estamos perdendo nossa identidade e vontade própria. Um exemplo disso é o progressivo desrespeito que o governo brasileiro tem com a própria nação. Precisamos ler e reencontrar/reescrever o Brasil. Estamos perdendo nossa mágica. O livro que devemos ler urgentemente é o de nossa autoria, é Machado de Assis, Arnaldo Jabor, José Mauro, etc. Vá à sua estante ou ao sebo mais próximo e pegue um pedacinho do Brasil de volta para você.
• Como formar um leitor no Brasil?
É preciso mudar urgentemente a forma de ensinar e de incentivar a leitura e o interesse pela cultura, em geral, aos jovens brasileiros. Pensei em falar mal da política educacional do país, mas do que iria adiantar? Não precisamos dos “colarinhos brancos” para mostrar aos nossos filhos, amigos e irmãos, a importância da cultura. Este incentivo deveria partir dos ciclos de amizades, dos bibliotecários, professores, familiares… Se o governo não cumpre o papel dele, por que EU não posso cumprir o meu? Por que não chego para um amigo e falo de algo que li, empresto um livro, converso sobre o tema? Por que a maioria dos professores não educa com carinho seus alunos? O educador é a principal ferramenta de formação de uma geração. Por que não escuta e ajuda seus alunos no caminho literário? Vou tentar resumir sem floreios esse desabafo. A formação cultural deve ser estimulada por cada cidadão consciente, com pequenos esforços. Se algo não funciona, como o modelo dos colégios, ignore. Troque informações, livros, poesias, cultura, com seus próximos. Procure e mostre algo diferente, não necessariamente novo. Confronte idéias, debata. Ajude-nos (ajude-se) a descobrir um novo caminho para a formação cultural do país. Quem sabe assim fugimos da — cada vez mais assustadora — desigualdade de oportunidades.