Obras de provocação

Entrevista com Gerald Thomas
O diretor teatral Gerald Thomas
01/08/2009

Gerald Thomas nasceu em Nova York, em 1954. Um dos diretores teatrais mais atuantes do mundo, já viveu e dirigiu espetáculos em diversos países, como Brasil, Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha, entre outros. No começo dos anos 80, em Paris, trabalhou diretamente com o escritor e dramaturgo Samuel Beckett, em várias adaptações das obras do autor irlandês para o teatro. Também estabeleceu parcerias de sucesso com o escritor alemão Heiner Müller e o compositor americano Philip Glass. No Brasil, Gerald criou a Dry Opera Company, responsável pela encenação de peças como Eletra com Creta, The flash and crash days, Nowhere man, Os reis do iê iê iê, Rainha Mentira e Um circo de rins e fígados. Dirigiu, ainda, várias óperas, aqui e na Europa, entre elas Tristão e Isolda e O holandês voador (O navio fantasma), de Wagner. Atualmente, assina o Blog do Gerald Thomas.

• Na infância, qual foi o seu primeiro contato marcante com a palavra escrita?
Essa pergunta é complicada. Fui criado em inglês e alemão. Portanto, alfabetizado nessas duas línguas. Depois, entrou o português. O alemão é técnico e, ao mesmo tempo, uma língua de índio: “flugzeug” quer dizer “coisa que voa”. Não tem uma palavra para expressar avião. “Buchstaben” quer dizer “letra”. Ou seja, “algo encravado no livro” quer dizer “letra”. Daí, dessa língua rica e pobre ao mesmo tempo, Max Bense começou a pegar os experimentos de Goethe e Schiller e criar a poesia concreta. Haroldo de Campos foi lá estudar com ele, em Tübingen, perto de Stuttgart. Eu li Kafka em alemão. Quando fui reler, em inglês, fiquei chocado. Era outro livro, outra coisa. Não tinha alma. Kafka quis transcender tudo, e transcendeu — até a linguagem —, quando Gregor Samsa acordou de manhã e se percebeu um enorme inseto. Só que isso, em alemão, é uma coisa específica, quase intraduzível, pois o próprio autor vivia na Checoslováquia, mas sua “tribo” era alemã. Se sentia mal e não falava checo. Acho que trabalhava na Seguradora Generalli.

• De que forma a literatura surgiu na sua vida?
Meus pais. Minha mãe havia sido aluna de Piaget em Genebra, antes da Guerra. E meu pai, um homem muitíssimo simples, um alemão que lutou dentro da Resistência a favor dos aliados (até onde deu). Ele exercia pequenos trabalhos e era louco por música — Beethoven, Mahler — e por Büchner, Goethe e Schiller. Acho que especialmente Schiller. Lia alto. Minha mãe lia alto também. Coisas acho que até pesadas para uma criança. Não lembro muito bem, mas nada de O pequeno príncipe, que só fui ler quando já adulto. Eram coisas complicadas. Minha mãe lia a revista Time alto, de cabo a rabo. Eu ficava lá, ouvindo.

• Que espaço a literatura ocupa no seu dia-a-dia e no seu método de trabalho?
Eu me “formei” — se é que se pode chamar disso — na Biblioteca do Museu Britânico (British Museum Reading Room), quando ainda era na Great Russell Street. Foi lá que Marx escreveu, à mão, Das Kapital; era lá que Arthur Koestler passava seus dias; era lá que muita gente lia. Eu lia. Eu li. Hoje, parece que só releio. Agora, neste momento, não sei bem por que, estou com um Huxley e um Alan Bennett no bolso. Sou um leitor compulsivo. Confesso que compro mais livros do que leio. Vou à Barnes & Noble ou aqui na Strand (em Nova York), e compro um livro porque acho que não o tenho. Chego em casa e já tenho aquele livro, cinco vezes em cinco edições diferentes. Só os do Beckett, por exemplo…

• Você possui uma rotina de leituras? Como escolhe os livros que lê?
Não, não tenho. Sou caótico no meu dia-a-dia. Cada dia num país diferente, dirigindo ou tendo que alterar cenas, etc. E tendo que “escrever”, mais do que ler. Te escrevo tendo uma pilha de todos os melhores e principais semiólogos na minha frente — literalmente, de S a Z —, mais Gertrude Stein — The making of Americans —, mais um livro sobre como Schoenberg compôs (a ópera) Moses und Aron, que dirigi em 1998, na Áustria, mas que ainda não “digeri”. Uma pilha já li, mas não conseguirei reler jamais, dado o meu ritmo.

• Você percebe na literatura uma função definida ou mesmo prática?
Ela nos conta quem nós somos. E quem fomos. Através de metáforas e parábolas, ou realidades e depoimentos. Acho que um pequeno grupo de jovens pode montar Júlio César, de Shakespeare, e entrar na queda do Império Romano. E isso é incrível. E esse grupo de jovens pode estar no interior do Arizona ou de Goiás. E, depois de ensaiada a peça e entendidos os papéis — Marco Antônio, Brutus, etc. —, terão sabido tudo sobre uma das épocas “pilastras” da nossa. Não tem nada igual a Shakespeare ou aos grandes mestres que nos possibilitam navegar através do tempo, entre a História e a metáfora, com pitadas de medo, de brutalidade e, ao mesmo tempo, uma noção incrível de efemeridade. Hamlet é a melhor coisa já escrita para teatro, acho.

• Como você reconhece a boa literatura?
Não reconheço! Ela nos pega de surpresa. É justamente o que a arte faz, seja qual for a arte. A literatura não é um produto de supermercado: “Vou comprar algo que me dê prazer”. Pelo menos não a vejo assim. A vejo — como todas as outras artes — como obras de provocação. E, como tal, elas te “pegam” quando você menos espera. Quando isso acontece, como aconteceu com o Moon palace (Palácio da lua), de Paul Auster, por exemplo, é uma sensação impressionante.

• Que tipo de literatura lhe parece absolutamente imprestável?
Ah, tem tanta merda por aí que enumerá-la seria uma enorme perda de tempo. Me lembro do Haroldo de Campos, num dos dias mais festivos na sua casa em Perdizes, depois de horas conversando, dizendo que oitenta por cento do que existe publicado é realmente uma bosta. Mas isso serve para tudo: música, teatro, pintura. O que sou obrigado a engolir de “quadro de quarto de hotel” mundo afora não está no gibi! E, com a literatura, não poderia ser diferente.

• Que grande autor você nunca leu ou mesmo se recusa a ler? Você alimenta antipatias literárias?
Saramago, Soljenitsin. São tantos!

• Que personagem mais o acompanha vida afora?
Vários. Joseph K, de O processo, de Kafka, e Próspero, de A tempestade, de Shakespeare, o mais iluminado dos homens (depostos).

• Que livro os brasileiros deveriam ler urgentemente?
É algo que não sei e não posso te responder.

• Como formar um leitor no Brasil?
O Brasil é complicado, mas tão complicado na área da educação que prefiro não entrar nesse debate. Principalmente agora, que o denominador comum está abaixo do nível subterrâneo, sem querer dizer, com isso, que ele seja “underground”.

Luís Henrique Pellanda

Nasceu em Curitiba (PR), em 1973. É escritor e jornalista, autor de diversos livros de contos e crônicas, como O macaco ornamental, Nós passaremos em branco, Asa de sereia, Detetive à deriva, A fada sem cabeça, Calma, estamos perdidos e Na barriga do lobo.

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