O real transfigurado

Entrevista com Faustino Teixeira
Faustino Teixeira
01/01/2009

Faustino Teixeira nasceu em Juiz de Fora (MG), em 1954. Graduou-se em Ciências das Religiões pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Cursou mestrado em Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, e doutorado na Pontifícia Universidade Gregoriana (a primeira escola fundada pelos jesuítas, em 1551), em Roma. Sua tese doutoral versou sobre comunidades eclesiais de base, e foi publicada em três volumes pelas editoras Vozes, Paulinas e Loyola. Também cursou pós-doutorado na mesma universidade italiana, e passou a se dedicar ao estudo do diálogo interreligioso. Após lecionar nas universidades PUC-Rio e Santa Úrsula (RJ), voltou à sua cidade natal. Lá, é professor de Teologia do Departamento de Ciências das Religiões da UFJF, onde também coordena o PPCR — Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião, de mestrado e doutorado. Publicou inúmeros artigos em revistas brasileiras e estrangeiras, como a Revista Eclesiástica Brasileira, Convergência e Concilium. É autor dos livros A fé na vida, Diálogo de pássaros: nos caminhos do diálogo interreligioso, A(s) ciência(s) da religião no Brasil: afirmação de uma área acadêmica e A espiritualidade do seguimento, entre vários outros.

• Na infância, qual foi seu primeiro contato marcante com a palavra escrita?
Já nasci em um ambiente muito propício a essa relação com a palavra escrita. Meu pai era um reconhecido médico em Juiz de Fora e tinha uma formação humanista bem singular. Na minha casa, a biblioteca era o recinto mais sagrado, e ocupava dois cômodos destacados. O setor dedicado à literatura era um dos mais prestigiados, juntamente com os de filosofia e teologia. A preocupação com a formação humana e literária estava também muito presente nos ambientes freqüentados por minha família. A própria cidade de Juiz de Fora sempre teve uma tradição de atenção aos valores humanos e culturais. E a literatura nacional tem importantes nomes que vieram de lá, como Murilo Mendes e Pedro Nava.

• E a literatura? De que forma ela apareceu “oficialmente” na sua vida?
É difícil precisar esse momento gerador, mas não posso me esquecer de alguns encontros iniciais que foram decisivos em minha adolescência e juventude. O contato com a obra de Hermann Hesse foi fulminante. Guardo ainda comigo a força inaugural das reflexões presentes em Sidarta, O lobo da estepe, Demian e Narciso e Goldmund. E autores nacionais foram também decisivos, como Erico Verissimo, João Cabral de Melo Neto e Graciliano Ramos. Uma paixão sempre presente foi a poesia. Ate hoje, é a poesia que mais movimenta o meu coração. Há que se recordar o meu encontro com Drummond, Manuel Bandeira e Fernando Pessoa.

• E, hoje, que espaço a literatura ocupa no seu dia-a-dia? Tendo em vista a sua área de atuação, ela influencia de alguma forma o seu método de trabalho?
A literatura é uma decisiva fonte inspiradora para a minha reflexão teológica. É o ar que nutre e areja a reflexão, suscitando inspirações únicas e singulares. Não posso deixar de mencionar o inspirador manancial que jorra dos poemas de Mario Quintana, Marco Lucchesi ou da jovem Mariana Ianelli. Há que se mencionar também a agudeza de reflexões que brotam de autores como Jorge Luis Borges e Ernesto Sabato. O meu dia-a-dia está povoado dessas reflexões e desses toques de sutileza. E não posso deixar de falar da literatura mística, que é uma força vital para mim: João da Cruz e Teresa d’Ávila, Rûmî, Yunus Emre, Ernesto Cardenal e tantos outros.

• Você acredita que a verdadeira experiência de Deus e a busca religiosa autêntica podem fazer o homem e o mundo atual trilhar caminhos mais pacíficos e engrandecedores — apesar das distorções fundamentalistas que se vêem por aí. A literatura, para você, se aproxima desses objetivos, desses ideais?
Acredito, sim, nessa possibilidade, apesar da força negativa dos ventos fundamentalistas. Mas há muito movimento positivo e em sentido contrário. A literatura favorece a inserção no real, abre veredas para o acesso às escarpas inalcançáveis do cotidiano. É a chave que faculta um novo olhar, uma nova percepção; inspira novos dinamismos de vida e, sobretudo, o cultivo de uma sensibilidade para penetrar no que é simples, mas que escapa de nossa atenção, está perdida entre os “rumores” da vida diária. Utilizando uma bela imagem de André Comte-Sponville, a literatura nos joga no rico dinamismo da “imanensidade”, nos ajuda a “habitar o universo” e despertar para o que há de mais simples e delicado no cotidiano.

• Você possui uma rotina de leituras? Como escolhe os livros que lê?
Por força e virtude de minha atuação profissional, como professor de universidade pública, tenho um largo espaço para as leituras. E minha rotina começa muito cedo. Estou sempre rodeado de livros, esses amigos inseparáveis. O prazer que tenho na leitura é único. Tenho sempre comigo um caderno onde vou destacando indicações de livros. Na leitura diária dos jornais, vou me antenando para as novidades e leio com grande prazer as resenhas que vão saindo. E o interesse maior está sempre relacionado aos cadernos culturais. Com a internet tudo ficou mais fácil, e também a aquisição dos livros.

• Você percebe na literatura uma função definida ou mesmo prática?
Acho meio complexo definir a função da literatura. Vejo nela uma fonte inesgotável para acessar o real e transfigurá-lo. Mas deve ser sempre algo gratuito. A literatura abre janelas e portas para o infinito, aquece o coração para lidar com a aventura da vida. E gostaria aqui de lembrar da importância desses novos poetas que fazem circular sua inspiração nas canções, como José Miguel Wisnik. Não há como ficar impassível diante da singeleza e beleza das letras que animam canções como DNA, Primavera e O extremo sul.

• Como você reconhece a boa literatura?
A boa literatura é aquela que consegue traduzir com vigor um “sentimento de mundo”, que consegue remexer as entranhas e despertar um novo gosto pela vida, deslocando o leitor da apatia e desencanto. A boa literatura aciona energias vitais…

• A literatura já lhe causou prejuízos, desgostos ou decepções? Já lhe provocou alguma grande alegria? Já lhe proporcionou alguma grande descoberta?
Na minha experiência de vida, a literatura foi, sobretudo, motivo de grande alegria e emoção. É verdade que ela pode, em certos casos, “tumultuar” os sentimentos e provocar reflexões que não estavam no repertório vital. Mas isso é muito bom. A literatura não nos afasta do mundo, mas nos situa de forma nua diante do seu quadro real. A literatura foi companheira em muitos dos processos de minha transformação pessoal, não há dúvida.

• Que tipo de literatura lhe parece absolutamente imprestável?
Prefiro não enveredar por esse caminho, fazendo juízos que podem ser precipitados e injustos. Contento-me em celebrar a alegria de estar diante de um repertório de livros que são ricos e novidadeiros. Aprendi com Neruda, em sua Ode à crítica, a ser mais humilde na avaliação dos outros. Nada mais nocivo do que os críticos impiedosos que, com seus “dentes e facas, com dicionários e outras armas negras”, irrompem contra as linhas que mantêm os sonhos dos simples despertos.

• Quais são seus autores prediletos? E os que mais influenciaram seu trabalho?
No âmbito da literatura, entre os autores nacionais, alguns permanecem sempre atuais e contagiantes, como Carlos Drummond de Andrade, Mario Quintana, Manuel Bandeira, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Entre os internacionais, poderia citar Arthur Rimbaud, Gabriel García Márquez, Pablo Neruda, Fernando Pessoa, José Saramago e Ernest Hemingway, entre outros. Em razão de estar trabalhando mais detidamente o tema da mística comparada, os autores que mais influenciam o meu trabalho, no momento, são aqueles ligados a essa área: Rûmî, Attar, Hallaj, João da Cruz, Teresa D’Ávila, Thomas Merton, Ernesto Cardenal e Simone Weil.

• E os livros? Quais foram fundamentais à sua formação pessoal e profissional?
Alguns livros permanecem vivos e inesquecíveis. Não posso deixar de mencionar alguns em particular: Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa; Sentimento do mundo, Claro enigma e As impurezas do branco, de Drummond; Baú de espantos e Apontamentos de história sobrenatural, de Mario Quintana; São Bernardo, de Graciliano Ramos; Aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector; Morte e vida severina, de João Cabral; Quarup, de Antonio Callado; e Amor nos tempos do cólera, de García Márquez. Há também os clássicos da mística: Sermões alemães, de Eckhart; Cântico espiritual, de João da Cruz; O meio divino, de Teilhard de Chardin; Masnavi, de Rûmî; A linguagem dos pássaros, de Attar; A espera de Deus, de Simone Weil; Sermões sobre o Cântico dos Cânticos, de Bernardo de Claraval; Moradas, de Teresa D’Ávila; e A Montanha dos Sete Patamares e Diário da Ásia, de Thomas Merton.

• Que personagem literário mais o acompanha vida afora?
O Riobaldo de Guimarães Rosa é um personagem sempre referencial. Outro personagem que sempre me marcou, como contra-exemplo, é o Paulo Honório, de Graciliano Ramos, em São Bernardo. Há também a Beatriz, da Divina Comédia, que sempre me acompanha com seu sorriso revelador.

• Que grande autor você nunca leu ou mesmo se recusa a ler? Você alimenta antipatias literárias?
Não tenho, assim, antipatias literárias. Tenho, sim, desejo de aventurar-me em certos autores em cuja leitura não tive a oportunidade de me aprofundar.

• Que livro os brasileiros deveriam ler urgentemente?
Para povoar a vida de atenção e delicadeza, sugiro a Poesia completa de Mario Quintana. Para entender o nosso momento, indico o último livro de José Miguel Wisnik, Veneno remédio: o futebol e o Brasil.

• Como formar um leitor no Brasil?
A melhor maneira é favorecer, desde cedo, o contato com os livros. Nada mais fundamental do que exercitar a leitura, e que isso seja feito como dinâmica prazerosa. Evitar a todo custo o exercício forçado. O segredo está na forma como se cativa o leitor. Uma vez seduzido, o caminho é sem volta. Há que se destacar o papel essencial da família e da escola nesse processo formativo.

Luís Henrique Pellanda

Nasceu em Curitiba (PR), em 1973. É escritor e jornalista, autor de diversos livros de contos e crônicas, como O macaco ornamental, Nós passaremos em branco, Asa de sereia, Detetive à deriva, A fada sem cabeça, Calma, estamos perdidos e Na barriga do lobo.

Rascunho