Espelho da alma

Entrevista com Rafael Gomes
Rafael Gomes
01/05/2009

Rafael Gomes é paulista e tem 26 anos. Cineasta, formado pela Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), é o diretor-geral de Tudo o que é sólido pode derreter, série juvenil produzida pela Ioiô Filmes Etc., exibida pela TV Cultura e baseada em um curta-metragem homônimo, dirigido por ele em 2005. Os treze episódios do programa traçam um paralelo entre o dia-a-dia de uma adolescente brasileira e os livros que ela lê. Foram adaptados para a série os clássicos O auto da barca do inferno, de Gil Vicente; os Sermões do Padre Antônio Vieira; os romances Senhora, de José de Alencar, Dom Casmurro, de Machado de Assis, Macunaíma, de Mário de Andrade, e Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector; as peças Macário, de Álvares de Azevedo, e Quem casa quer casa, de Martins Pena; e os poemas Ismália, de Alphonsus de Guimarães, Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade, Canção do exílio, de Gonçalves Dias, O guardador de rebanhos, de Fernando Pessoa, e Os lusíadas, de Camões.

Seu trabalho mais conhecido é o vídeo Tapa na pantera, com a atriz Maria Alice Vergueiro, dirigido por Rafael em 2006, em parceria com Esmir Filho e Mariana Bastos. A obra virou fenômeno no YouTube, onde ultrapassou a marca de 15 milhões de acessos. Rafael Gomes já dirigiu e ganhou prêmios por vários outros curtas, como Ato II Cena 5 (co-direção de Esmir Filho); Alice, com a atriz Simone Spoladore; e Relicário, cujo roteiro venceu o Prêmio Estímulo de Curta-metragem, promovido pela Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo.

O cineasta também dirigiu os vídeos da montagem teatral do texto Matamoros (da fantasia), de Hilda Hilst, e adaptou e dirigiu, ao lado de Heron Coelho, a peça Calabar, o elogio da traição, de Chico Buarque e Ruy Guerra. Além disso, Rafael Gomes é o criador do projeto virtual Música de bolso, que une música, cinema e novas mídias e já contou com a participação de artistas como Pato Fu, Zélia Duncan, Arnaldo Antunes, Mart’nália e Marcelo Camelo.

• Na infância, qual foi seu primeiro contato marcante com a palavra escrita?
Eu lembro de, num primeiro momento, ler revistas “fáceis”, como a Contigo! e os gibis da turma da Mônica.

• E a literatura? De que forma apareceu na sua vida?
Minha mãe sempre leu livros para mim, quando criança. Depois, por conta própria, me lembro com vivacidade da série O pequeno vampiro, de Angela Sommer-Bodenburg. Na escola onde eu estudava, havia os “clássicos” das aulas, que se tornavam assunto de debate entre todas as crianças que os liam (e comigo não foi diferente): A ilha perdida, de Maria José Dupré, e as aventuras dos personagens da turma dos Karas, de Pedro Bandeira, cujos títulos de que mais me recordo são A droga da obediência, Pântano de sangue, Anjo da morte e A droga do amor. Isso por volta dos 10, 11 anos. Acho que, a partir daí, eu já estava fisgado pela literatura.

• Que espaço a literatura ocupa no seu dia-a-dia? E de que forma ela influencia o seu trabalho?
Se pensarmos (e eu penso) que o cinema acaba sendo um ponto de confluência de todas as outras artes — literatura, teatro, fotografia, música, artes plásticas, dança, etc. —, então é justo dizer que a literatura é parte do que eu faço sempre, direta ou indiretamente. Compro livros mais rapidamente do que os leio e, na adolescência, lia com uma freqüência que até hoje não consegui retomar. Mas, de forma geral, os livros lidos e os não lidos estão permanentemente em minha cabeça, como inspiração, referência, estudo, anseio ou simples paixão.

• Você possui uma rotina de leituras? Como escolhe os livros que lê?
Não possuo uma rotina, porque me divido não só com o trabalho criador, mas também com a tarefa de ser espectador de outras artes (cinema, teatro, música). Então, leio quando consigo, quando não estou lendo para estudar. Basicamente, escolho os livros pelos autores de quem tenho conhecimento ou boas referências, mas sou extremamente disposto a acreditar em uma resenha favorável, ou em uma recomendação de confiança, e tenho a curiosidade de descobrir coisas novas.

• Dê um exemplo de boa e má adaptação cinematográfica de um livro.
Os bons exemplos são raros. Ou, como dizem com razão os cineastas mais lúcidos, os maus livros se prestam mais a virarem bons filmes. Mas livros seminais às vezes são transformados em obras-primas cinematográficas, como Morte em Veneza, romance de Thomas Mann, filme de Luchino Visconti. A percepção de que uma adaptação é ruim, para mim, geralmente advém nem tanto de uma suposta inabilidade da adaptação em si, mas de um sentimento que parece dizer “não mexa com quem está quietinho”, ou seja, deixe que esse livro tão brilhante nos baste sendo um livro brilhante. Me vêm à mente dois maus casos recentes: a tola transposição do vigorosíssimo Reparação de Ian McEwan (que virou Desejo e reparação, com direção de Joe Wright) e o desastre inominável que é Revelações (com direção de Robert Benton), adaptação do estonteante livro A marca humana, de Philip Roth.

• Quem foi o melhor contador de histórias das últimas décadas: a literatura, a tevê ou o cinema?
O melhor? Acho impossível categorizar, porque cada um deles contou/conta histórias à sua maneira. A literatura consegue a profundidade emotiva, psicológica e intelectual que é só dela. O cinema, citando o velho clichê, é capaz de criar uma imagem sublime que vale por milhões de palavras. E ninguém tira da tevê a majestade do folhetim. Agora, em termos estritos de alcance e penetração, acho que a televisão leva o troféu, haja vista não só nossas telenovelas como as dezenas e dezenas de séries que o mercado norte-americano produz e exporta a cada ano, com gramática e qualidade ímpares.

• Hoje, quais são seus livros e autores prediletos?
Acho que quem eu sou passa necessariamente por Shakespeare, Tchekhov, Philip Roth e Thomas Bernhard. No Brasil, por Bernardo Carvalho e Milton Hatoum. Também devo a Hilda Hilst, Paul Auster, Nelson Rodrigues, Saramago, Jane Austen, Nabokov, ao Flaubert de Madame Bovary e ao Alan Pauls de O passado. E até mesmo à literatura pop de Alex Garland, em A praia.

• Como foram escolhidas as obras adaptadas em Tudo o que é sólido pode derreter?
Do amplo espectro das obras existentes em língua portuguesa, buscamos aliar aquelas que tinham inegável importância na história da literatura, as que eram estudadas em sala de aula (e conseqüentemente exigidas nos vestibulares) e as que apresentavam potencial dramático para o desenvolvimento de um roteiro que as abordasse.

• Você percebe na literatura uma função definida ou mesmo prática?
Objetivamente, não. Para mim, ela alimenta o espírito e propicia reflexões amplas acerca do eu e do mundo. Nessa medida, poderíamos dizer que ela é capaz de formar melhores seres humanos e cidadãos?

• Que tipo de literatura ou de autor lhe parece absolutamente imprestável?
Aquela que é rasteira e superficial, quase enganosa. E não rechaço, aqui, o entretenimento pelo entretenimento, ou mesmo tantos possíveis subgêneros específicos de literatura, mas sim aquele tipo de obra que é pernóstica e finge dizer coisas que não diz. Em suma, a literatura burra.

• Que personagem literário mais o acompanha vida afora?
Hamlet, sem dúvida nenhuma.

• Que livro os brasileiros deveriam ler urgentemente?
A obra de Brecht.

• Como formar um leitor no Brasil?
Como em qualquer lugar do mundo, creio. Com perspicácia, que é como se forma um apreciador de qualquer arte: sem forçar o contato, mostrando aos poucos aquilo que ela tem de melhor, instigando a curiosidade e erguendo singelamente o espelho que ela pode ser para as questões da alma. E que é o que humildemente tentamos fazer com Tudo o que é sólido pode derreter. Agora, se não der, não deu.

Luís Henrique Pellanda

Nasceu em Curitiba (PR), em 1973. É escritor e jornalista, autor de diversos livros de contos e crônicas, como O macaco ornamental, Nós passaremos em branco, Asa de sereia, Detetive à deriva, A fada sem cabeça, Calma, estamos perdidos e Na barriga do lobo.

Rascunho