O maestro e compositor Marlos Nobre nasceu em Recife, em 1939. Teve aulas de piano e teoria musical no Conservatório Pernambucano de Música. Estudou harmonia e contraponto com o padre Jaime Diniz e composição com H. J. Koellreutter e Camargo Guarnieri. Ganhador de uma bolsa da Fundação Rockefeller, realizou estudos avançados de composição no Centro Latino-americano de Altos Estúdios Musicales do Instituto Torcuato Di Tella, em Buenos Aires, com Alberto Ginastera, Olivier Messiaen, Riccardo Malipiero, Aaron Copland e Luigi Dallapiccola. Trabalhou composição com Alexandre Goehr e Günther Schüller, no Berkshire Music Center em Tanglewood, nos Estados Unidos, onde conheceu Leonard Bernstein. E estudou música eletrônica no Centro de Música Eletrônica de Columbia-Princeton em Nova York, com Vladimir Ussachevsky.
Nobre também já ocupou a direção musical da Rádio MEC e do Instituto Nacional de Música da Funarte. Foi presidente do Conselho Internacional de Música da Unesco, em Paris, e também o primeiro brasileiro a reger a Royal Philharmonic Orchestra de Londres. No cinema, o maestro assinou a música do clássico O dragão da maldade contra o santo guerreiro, de Glauber Rocha. Atualmente, é dele a cadeira número 1 da Academia Brasileira de Música, já ocupada por Heitor Villa-Lobos.
• Qual foi seu primeiro contato marcante com a palavra escrita?
Felizmente, meu pai tinha uma excelente biblioteca, e a leitura era um hábito em minha casa. Fiz o que se chamava de jardim de infância não em uma escola, como é praticamente obrigatório hoje em dia, mas na casa de uma professora particular, Lenira, a alguns passos de onde eu morava. Era esse o hábito em Recife, na época. Lembro perfeitamente do dia em que comecei a escrever. Uma estranha sensação, uma claridade especial. Em um momento, eu começava a ler e a escrever. Creio que esse, seguramente, foi o momento mais marcante.
• E a literatura? Como ela apareceu “oficialmente” na sua vida?
A literatura apareceu naturalmente, desde muito cedo. Minha casa era cheia de livros, e eu e minha irmã, Vanede (que depois se tornaria escritora), líamos compulsivamente. Os primeiros livros que li foram os de Monteiro Lobato, dados pela minha mãe. Posso dizer que minha infância inteira foi povoada pelas aventuras de Narizinho, de Emília, do Visconde de Sabugosa, de Pedrinho, e da velha Anastácia. Aquele mundo maravilhoso me fascinava profundamente. Logo passávamos a escrever nossas próprias histórias, da maneira mais natural. Pouco a pouco, fui devorando os livros do meu pai. Eu passava à noite na sua biblioteca, lendo compulsivamente. Não havia limites e eu devorava tudo. Papai tinha a coleção inteira de Monteiro Lobato, Dostoievski, Eça de Queiroz e Machado de Assis, e muitos livros de Herman Hesse e Roger Martin du Gard. Um tesouro. Eu lia – escondido, e com o coração batendo forte – O crime do padre Amaro, de Eça. Mas os livros que me marcaram mais fortemente foram Narciso e Goldmundo, de Hesse, e Os Thibault, de Roger Martin du Gard, além de Crime e castigo, de Dostoievski. Entre os brasileiros, era Machado de Assis quem me fascinava. A existência de uma biblioteca boa, em casa, abriu toda uma vida para mim. Aliás, meu sonho era ser escritor, como era o de minha irmã, mas a música (que comecei a estudar aos quatro anos) foi mais forte. Tenho que mencionar ainda o livro que mais me marcou, e que li aos 14, 15 anos: Jean-Christophe, de Romain Rolland. Li seus cinco volumes em estado absoluto de exaltação. Ali, eu encontrava a literatura e a música. Jean-Christophe e Narciso e Goldmundo eram os meus livros de cabeceira, os únicos que eu relia com a mesma fascinação. Mas não posso deixar de comentar rapidamente como era Recife na minha adolescência. Formávamos um grupo de jovens intelectuais sedentos por literatura e música. Nos reuníamos diariamente, a maioria das vezes no Savoy, um bar na Avenida Guararapes, onde o clima era efervescente. Todos lá eram jovens escritores: o brilhante Edilberto Coutinho, Samuel Kreimer, Werner Tiburtius e tantos outros que não seguiram depois. Lembro das discussões acaloradas entre o regionalismo de Ariano Suassuna e o “internacionalismo” das inteligências jovens, que descobriam Freud e Hesse. Enfim, era um cadinho criativo que forjou para sempre minha mente criadora. Para mim, literatura e música eram a mesma fonte; só me orientei definitivamente para a música e para a composição aos 19 anos.
• E, hoje? Que espaço a literatura ocupa no seu dia-a-dia? Tendo em vista a sua área de atuação, ela influencia de alguma forma o seu método de trabalho?
Hoje, a literatura não ocupa muito espaço no meu dia-a-dia, por uma questão de absoluta falta de tempo. É um fato que constato com pena: não tenho muito tempo disponível para ler. Acompanho tudo que acontece, na medida do possível, mas a composição é uma atividade absorvente e trabalhosa. De qualquer forma, tudo que absorvi de minhas leituras influenciou definitivamente minha atividade musical. E a poesia, esta sim, continua a ocupar um espaço fundamental em minha vida. A própria disciplina para o trabalho me veio da literatura. Ora, em geral os músicos são mais dispersos que os literatos. Pelo menos, foi o que pude constatar durante meu contato com escritores na juventude. Aprendi, então, algo essencial: a reservar um tempo diário para a criação pura. Essa disciplina me faz sentar para escrever, diariamente, das 8 às 13 horas – tenha eu ou não vontade de fazer isso. A “musa”, portanto, obedece a um horário, pois eu literalmente a forço a me conceder suas benesses. Após algum tempo, também aprendi que a inspiração nos vem sempre, desde que criemos um espaço favorável a ela. Esse espaço significa tempo e meditação. Li sobre isso em algum livro de Herman Hesse, não lembro agora se em Narciso e Goldmundo, mas essa dualidade entre disciplina e inspiração foi uma lição imensa para mim.
• Como a palavra escrita pode ser “traduzida” para a linguagem musical?
A palavra escrita sempre exerceu um grande fascínio sobre mim. Aliás, algumas das melhores obras que escrevi resultaram de poemas ou palavras que depois transformei em obras musicais minhas. Os poetas que coloquei em música são – até agora – Manuel Bandeira, Ascenso Ferreira, Mário de Andrade, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Antonio Tavernard e, além dos brasileiros, Federico García Lorca (o Llanto por Ignacio Sánchez Mejías) e Heinrich Heine (o ciclo completo do Kleine Gedichte, em alemão). Minha maneira de trabalhar com textos é muito peculiar: eu não procuro jamais “traduzir” a linguagem poética para a linguagem musical. Para mim, a coisa funciona como uma espécie de osmose, lenta e amadurecida. Eu incorporo o poema. E só posso escrever música a partir de um texto se ele me atinge de um jeito muito particular. Não pode ser qualquer texto, naturalmente. Por isso leio muito, atual e exclusivamente, poesia. Romances, não. Ao ler, quando algum poema me atinge de um modo especial, ele imediatamente me desperta impressões musicais. A minha maneira, absorvo o texto poético e, depois, a música começa a fluir. Mas não é um trabalho fácil. Só para lhe dar uma idéia: levei cerca de dez anos para colocar em música o texto A Federico, de Carlos Drummond de Andrade, que finalmente escrevi para soprano e orquestra de cordas – intitulando minha peça O canto multiplicado. Portanto, faço uma espécie de análise dramática de cada texto e, só depois desta análise, surge alguma estrutura musical. Mas a música, ela mesma, só nasce de algo completamente inexplicável em simbiose com o texto, algo retrabalhado mentalmente por mim. No caso de García Lorca, adaptei todo o seu Llanto, que é imenso, mas tão carregado de emoção e de força telúrica que a música me brotou da maneira mais espontânea possível. Aliás, foi uma das peças que escrevi mais rapidamente. Com Heine, tive mais trabalho, pois estudei profundamente o texto alemão original e, após uma longa meditação, escrevi as sete partes do poema, integralmente. A estréia da obra no Teatro de Bayreuth, na Alemanha, me consolou do trabalho. Foi uma recepção pública maravilhosa.
• Você cultiva uma rotina de leituras? Como escolhe os livros que lê?
Não possuo uma rotina de leituras. É impossível criar uma rotina hoje em dia, e isso já vem acontecendo nos últimos dez anos, mais ou menos. O tempo, essa entidade terrível, se escoa rápido, e tenho ainda uma obra musical imensa a escrever. Assim, ao ler eu me oriento para objetivos claros. O mais direto atualmente é o da ópera que quero começar a escrever agora. Será sobre o mito de Lampião. O libreto será escrito por mim mesmo, baseado na imensa literatura de cordel nordestina produzida sobre Lampião. Isso nos dá um exemplo claro do meu trabalho: a literatura popular de cordel não está, naturalmente, no mesmo diapasão da poesia “erudita”. Mas o assunto da ópera requer uma poesia ligada visceralmente a ele. E Lampião jamais foi descrito tão bem como na literatura de cordel. O que me interessa nele não é o seu lado histórico, verdadeiro, descrito nos anais objetivos dos analistas frios ou das autópsias de laboratório. O que me interessa é o que Lampião representa no imaginário e nos anseios das populações pobres sertanejas. Interessa-me o mito e não o real. Interessa-me saber na poesia de cordel como o sertanejo continua vendo em Lampião a realização de uma vontade ainda premente: a possibilidade da mudança, o fato de ser possível revoltar-se contra a exploração ainda real do pobre, sobretudo no Nordeste. Assim, adquiri uns 350 livrinhos de cordel sobre Lampião e o cangaço e os li todos, anotando tudo, fazendo deles um roteiro imaginário da trajetória desse mito brasileiro. Considero Lampião o assunto mais brasileiro possível. Aliás, foi lendo Mário de Andrade, justamente seu célebre ensaio sobre o cordel e Lampião, que cheguei a essas fontes e me entusiasmei pelo tema.
• Você percebe na literatura uma função definida ou prática?
Não. Para mim a literatura, tal como a música, é uma alegoria do espírito, provocadora, uma infinidade de explosões que atingem cada ser humano de maneira diferente. Não existe uma reação definida nem uma visão “prática” de um livro ou de um poema, mas cada um deles provoca uma reação espiritual essencialmente diferente em cada ser humano.
• Como reconhecer a boa literatura?
Acredito poder reconhecê-la desde os primeiros parágrafos de um livro, assim como faço com uma poesia. Quer um exemplo claro? De tanto ouvir falar, comprei O alquimista, de Paulo Coelho. Não passei da primeira página. Aliás, nem acreditei no que lia. Pensei estar enganado e folheei outras páginas. Em todas, encontrei o que penso ser a verdadeira subliteratura. Mal escrita, sem relevância nem transcendência. Atirei o livro longe, para nunca mais ler esse autor. Estou sendo claro? Pode ser que me engane, naturalmente, mas para mim literatura é como A hora da estrela, de Clarice Lispector. Você começa a ler e é literalmente agarrado pela garganta. Não pode mais largar o livro, fascinado pela escrita. Para mim, isto é a literatura: o fascínio da escrita pura.
• A literatura já lhe causou prejuízos, desgostos ou decepções? Já lhe provocou alguma grande alegria? Já lhe proporcionou alguma grande descoberta?
Nem prejuízos, nem desgostos, nem decepções. Decepções somente ao começar a ler um livro badalado e, de repente, encontrar nele a miséria da escrita. Mas aí é só largá-lo e jogá-lo longe. Grandes alegrias, sim, grandes descobertas, sim. E imensas: a grande descoberta para mim foi Narciso e Goldmundo, de Hesse; a grande alegria foi Jean-Christophe, de Romain Rolland. Mas também, e, sobretudo, as cartas de Mário de Andrade e Manuel Bandeira.
Que tipo de literatura lhe parece absolutamente imprestável?
• Já disse, mas repito: o tipo de pseudoliteratura praticada pelo senhor Paulo Coelho.
• Que personagem literário mais o acompanha vida afora?
O Jean-Christophe, de Romain Rolland.
• Que grande autor você nunca leu ou mesmo se recusa a ler?
O grande autor que nunca li e por quem nunca me interessei é, lamento, Marcel Proust.
• Que livro os brasileiros deveriam ler urgentemente?
Acho que os brasileiros deveriam ler urgentemente todo o Monteiro Lobato. Porque nele está uma visão do Brasil que não podemos ignorar. Seus livros deveriam ser adotados obrigatoriamente em todas as escolas públicas e privadas de todo o país.
• Como formar um leitor no Brasil?
Não penso que seja somente por meio das bibliotecas públicas. Penso, prioritariamente, que para formar um leitor no Brasil o livro deve existir em todas as casas brasileiras. Digo isso por experiência própria. Foi graças aos livros que existiam na minha casa, em Recife, que penetrei no mundo da literatura. Fala-se muito em bibliotecas públicas; isso é certo e também necessário. Mas fundamental é que a casa de cada brasileiro conte com um pequeno e bom acervo de livros. A criança tem de ler desde cedo e somente tendo o livro à mão, na prateleira de sua casa, ela o fará. E acredito nisso: não há televisão ou computador que substitua a experiência mágica de ler. Mas se a criança só encontrar a tevê e o computador em casa, ela vai ficar sem opções. Devemos pensar nisso, seriamente. Como fazer? É simples, vejo isso como uma atitude simples e direta. Uma campanha a ser feita por todos, livreiros, academias, críticos, jornais, televisões, etc. É o que penso e espero.