De dentro para fora

Bráulio Mantovani fala sobre sua relação com a literatura
Bráulio Mantovani. Foto: Carolina Kotscho
01/12/2008

Bráulio Mantovani nasceu em 1963, em São Paulo. Atualmente, é um dos nomes mais importantes do cinema nacional, roteirista de filmes como Cidade de Deus (de Fernando Meirelles), Linha de passe (de Walter Salles e Daniela Thomas), Tropa de elite (de José Padilha), Última parada 174 (de Bruno Barreto), O ano em que meus pais saíram de férias (de Cao Hamburger) e Chega de saudade (de Laís Bodansky), entre outros. Formado em Língua e Literatura Portuguesa pela PUCSP, é pós-graduado em Roteiro Cinematográfico pela Universidade Autônoma de Madri. Por seu trabalho em Cidade de Deus, concorreu ao Oscar de melhor roteiro adaptado em 2004.

• Na infância, qual foi seu primeiro contato marcante com a palavra escrita?
Foi com uma HQ do Fantasma.

E a literatura? De que forma apareceu na sua vida?
Na escola, na quarta série do primário, como se chamava antigamente. Foi um livro chamado Coração de vidro, de José Mauro de Vasconcelos.

Que espaço a literatura ocupa no seu dia-a-dia? E de que forma ela influencia o seu trabalho de roteirista?
Ocupa um espaço bem menor do que eu gostaria. O trabalho com cinema acaba limitando meu tempo para a leitura de ficção e poesia. Mas eu tenho sempre um livro na cabeceira da cama. Muitas vezes só consigo ler um par de páginas antes de dormir, dado o meu esgotamento físico. Atualmente, estou lendo 2666, de Roberto Bolaño. Mas não consigo ver nenhuma influência direta da literatura no meu trabalho em cinema. São universos de escrita muito distintos.

Dê um exemplo de boa adaptação cinematográfica de um livro.
A adaptação que eu mais admiro é A cock and bull story, com roteiro de Frank Cotrell Boyce e direção de Michael Winterbottom. É a adaptação de um romance até então considerado impossível de se adaptar: A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy, de Laurence Sterne, traduzido no Brasil pelo José Paulo Paes. É um dos meus livros preferidos. E o filme é genial, pois adapta a forma da narrativa, o que é muito mais difícil do que simplesmente adaptar tramas.

O cinema foi o melhor contador de histórias do século 20?
Depende. Se pensarmos em termos de alcance de público, a tevê ganha do cinema.

Quais são seus livros e autores prediletos?
Machado de Assis (Memórias póstumas de Brás Cubas), Guimarães Rosa (Grande sertão: veredas), Laurence Sterne (A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy), Cervantes (Dom Quixote), James Joyce (Ulisses), Samuel Beckett (Fim de jogo), José Agrippino de Paula (PanAmérica), Thomas Pynchon (O arco-íris da gravidade) e, é claro, Shakespeare (Hamlet).

Você possui uma rotina de leituras? Como escolhe os livros que lê?
Leio sem nenhuma rotina. Gosto de ler livros sobre ciência (física, neurociência), além de romances. Mas escolho os livros ao acaso. Não tenho método nem disciplina.

Você percebe na literatura uma função definida ou mesmo prática?
Se tiver uma função definida ou prática, não deve ser boa literatura. A beleza da literatura está justamente na indefinição (ou na definição imprecisa) de sua função e na sua falta de praticidade. Ainda bem.

A literatura já lhe causou grandes prejuízos, decepções ou alegrias?
A literatura que mais me interessa é a que me causa perturbação ou excitação mental.

Que tipo de literatura ou de autor lhe parece absolutamente imprestável?
Não existe esse absoluto. O que é imprestável para mim pode ser imprescindível para outro leitor.

Que personagem literário mais o acompanha vida afora?
Acho que é o narrador Tristram Shandy, do Sterne.

Que livro os brasileiros deveriam ler urgentemente?
Qualquer um que possa ser lido sem nenhuma pressa.

Como formar um leitor no Brasil?
Sinceramente, não sei. Talvez a escola seja o lugar obrigatório para essa tarefa. Mas se não houver prazer na leitura, não haverá leitores. E prazer é algo que não se pode produzir de fora para dentro.

Luís Henrique Pellanda

Nasceu em Curitiba (PR), em 1973. É escritor e jornalista, autor de diversos livros de contos e crônicas, como O macaco ornamental, Nós passaremos em branco, Asa de sereia, Detetive à deriva, A fada sem cabeça, Calma, estamos perdidos e Na barriga do lobo.

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