Vinte anos de planos nacionais de leitura

A necessidade urgente de retomar ações e políticas públicas voltadas à formação de leitores
Ilustração: Mariana Tavares
01/10/2023

O Cerlalc (Centro Regional de Fomento ao Livro na América Latina, Caribe, Portugal e Espanha), órgão vinculado à Unesco, lidera as comemorações dos vinte anos de atividades que geraram a Redplanes (Rede Ibero-americana de Responsáveis de Políticas e Planos de Leitura). Como secretário executivo do PNLL brasileiro de 2006-2010 e 2013-2016, fui o representante do nosso país nesse importante foro.

A data chama à reflexão sobre os resultados, os impasses, o que se avançou e o que ainda é uma meta a ser alcançada dentre os grandes objetivos concebidos em 2003 pelas autoridades públicas da cultura e da educação da maioria dos países da região ibero-americana, e referendados pelos chefes de Estado no mesmo ano.

Como presidente da editora Unesp e da Associação Brasileira de Editoras Universitárias (Abeu), assim como diretor-geral da Biblioteca Mário de Andrade de São Paulo à época desses acontecimentos fundadores, passei de observador à ativista atuante dessa política de fomento à leitura a partir de 2004, quando me juntei a um pequeno grupo de colegas do mundo editorial para representar a sociedade civil no que viria a ser, em 2005, o Ano Ibero-americano da Leitura, ou Vivaleitura. Sem qualquer pretensão de esgotar o tema neste artigo, registro algumas notas sobre esses 20 anos de lutas por políticas públicas includentes e democráticas que defenderiam o direito humano à leitura e à escrita.

Talvez os mesmos fatores de opressão que nos levam a negar o direito à leitura para a maioria dos nossos também estabeleça que sejamos uma nação de rasa memória política. O esquecimento se aprofunda quando vivenciamos apagões democráticos, como a última tentativa quadrilheira que começou com a destituição da presidente eleita e terminou com um facínora no planalto.

Muitas políticas emancipadoras que hoje felizmente retornaram com o governo atual soam como novidade, mas já constituíam as bases de construção dos planos nacionais de leitura em 2003. É preciso relembrar para refletirmos sobre a história dessas políticas públicas e as suas heranças.

Comecemos pelos pressupostos políticos e os conceitos daquele período. Antes, é preciso lembrar que o início do século 21 foi para a maioria dos países ibero-americanos a afirmação dos rumos democráticos que haviam conquistado a partir de meados dos anos 1980, quando ruíram as sangrentas ditaduras militares da região. Os anos 2000 também marcaram um período de rejeição do até então pujante neoliberalismo e a consolidação regional de uma ideia de desenvolvimento sustentável que levasse em conta não apenas os avanços econômicos e financeiros dos países, mas também os seus índices de desenvolvimento humano e social.

Não é sem base material que encontramos na Declaração de Santa Cruz de la Sierra, de 14 e 15/11/2003, expressando resoluções da XIII Cúpula Ibero-americana de Chefes de Estado e de Governo, a epígrafe La inclusión social, motor del desarrollo de la Comunidad Iberoamericana”.

Em uníssono, as lideranças nacionais afirmaram os objetivos democráticos de inclusão voltados ao desenvolvimento humano e que nortearam as principais políticas do Brasil e da região. É notável alguns itens desta Declaração de 2003, da qual destaco alguns itens e trechos:

(Item) 2. Reconhecemos que a luta contra a pobreza é essencial para a promoção e consolidação da democracia e constitui uma responsabilidade comum e partilhada dos nossos Estados e da Comunidade Internacional. Declaramos que a superação da pobreza exige a aplicação de políticas abrangentes definidas e desenvolvidas pelo Estado com a participação de todos os setores da sociedade, sendo o crescimento econômico uma condição necessária, mas não suficiente para promover uma melhor qualidade de vida, superar a pobreza e eliminar a exclusão social.

(item) 31. Estamos conscientes da importância da educação como fator de inclusão social para a erradicação da pobreza, a consecução do desenvolvimento sustentável e a construção de sociedades prósperas e democráticas.

(item) 33. Afirmamos que a cultura contribui para o desenvolvimento humano sustentável como elemento de coesão social, baseado numa perspectiva integral da pessoa, que tem em conta a pluralidade das suas necessidades e aspirações. Reconhecemos a riqueza da nossa diversidade cultural como um valor fundamental da Comunidade Ibero-Americana e destacamos a conveniência de promover, de forma plena e gratuita, políticas públicas integrais e transversais que incentivem a produção de bens e serviços culturais como fontes de valor agregado.

(item) 35. Convencidos do valor da cultura para contribuir na busca da equidade social, proclamamos o ano de 2005 como o Ano Ibero-americano da Leitura e propomos unir esforços dos setores público e privado para levar à bom termo o Plano Ibero-Americano da Leitura aprovado pela VII Conferência Ibero-Americana de Cultura.

Esses quatro itens dizem por si, mas gostaria de salientar alguns pontos. A unificação da luta contra a pobreza com a construção da democracia ampliou o conceito de política pública voltada aos pobres, promovendo a busca da dignidade de uma vida com trabalho, moradia, alimentação, saúde, transporte, educação e cultura, entre outros, que se constituíram como direitos inalienáveis de uma sociedade que se quer chamar de humana. Na mesma perspectiva, a Declaração alinha a indissociabilidade da educação e da cultura, irmanando-as na luta contra a pobreza, pela democracia, pelo desenvolvimento sustentável. Admite ainda a promoção da diversidade e a pluralidade de nossas populações.

Finalmente, é importante destacar que as convergências desses itens que discriminei acima confluíram para a aprovação de um Plano orientador, o Plano Ibero-americano da Leitura cujo primeiro passo foi a instituição, em 2005, do Ano Ibero-americano da Leitura. Traçou-se, assim, um novo caminho de construção de sociedades leitoras, baseado nos direitos humanos, no desenvolvimento integral das pessoas e na perspectiva da consolidação da democracia.

É importante assinalar que a Declaração dos Chefes de Estado e de Governo na área cultural foi antecedida pela VII Conferencia Ibero-americana de Cultura, compostas pelos ministros da Cultura da região e realizada em Cochabamba, Bolívia, nos dias 2 e 3/10/2003.

Esta conferência produziu a Declaración de Cochabamba, que nos seus itens 8 e 9 orientou o que viria ser o ordenamento político que estipulou a criação dos Planos Nacionais de Leitura a partir de 2005:

(item) 8. Ajudar a erradicar múltiplos tipos de analfabetismo através de políticas culturais, uma vez que é uma das piores formas de exclusão social que sofrem os nossos países.

(item) 9. Adotar o Plano de Leitura Ibero-americano apresentado pela OEI e CERLALC e comprometer-se a apoiar o seu desenvolvimento, entendendo que os seus objetivos incluem contribuir para a erradicação do analfabetismo.

Não só o Brasil instituiu, em 2006, o seu Plano Nacional do Livro e Leitura/PNLL tendo em conta essas perspectivas. Muitos dos países que implantaram programas e ações em sucessivos Planos enfatizaram a necessidade de as políticas culturais estarem presentes, junto à educação, na formação de leitores plenos.

Passados 20 anos do início desse movimento, reafirmo que sua justeza e legitimidade, com base na construção da equidade social e da diversidade entre tantas multiculturalidades de nossas sociedades, ainda é um valor e uma estratégia imprescindível para a consolidação da democracia e de uma região mais justa socialmente e com leitores plenos.

Apesar disso, e de muitos logros conquistados, das comemorações surgem as perguntas principais: por que ainda persiste a resistência nos governos “progressistas” em implementar políticas públicas estruturantes de formação de leitores e leitoras que viabilizem Políticas de Estado para o setor, como a brasileira Lei 13.696/2018 da PNLE? Por que a cadeia do livro e da leitura não promove essa reivindicação como sua principal estratégia junto aos governos?

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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