Diz a sabedoria popular que destruir é fácil e a reconstrução sempre é mais penosa que a construção original. Não sei se isso se aplica a todas as situações que se nos apresentam, mas seguramente é uma sensação que temos em inúmeras ocasiões ao longo da vida. Quando analisamos a destruição de políticas públicas, esse ditado popular se avoluma ao atingir milhares ou milhões de pessoas, como aconteceu recentemente nos governos federais de 2016 a 2022, quando o Brasil perdeu 16,5 milhões de novos leitores e a incipiente política pública de formação de pessoas leitoras, baseada no Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), foi banida juntamente com a extinção do MinC e a ideologização à extrema direita do MEC.
O terceiro mandato do presidente Lula se deparou com um estado de destruição não apenas de planos, programas ou ministérios pontuais. Na verdade, o que o país ainda está enfrentando são as consequências da quebra da institucionalidade republicana e do papel do Estado como motor de desenvolvimento e promotor de maior equidade social e econômica.
Ao destruir ministérios e projetos que asseguram direitos, não são apenas os programas que cessam, mas toda a tecnologia acumulada, todo o consenso obtido na concepção, planejamento, aprovações políticas, jurídicas e econômicas e, ainda, a aprendizagem da implantação igualmente tragada pelo abismo destrutivo. Perdem-se servidores públicos comprometidos, perde-se credibilidade com os beneficiados, perdem-se orçamentos, perde-se o espaço político conquistado e o discurso contrário à equidade e ao desenvolvimento ganha corpo para legitimar a destruição.
A dinâmica dessa corrosão é insidiosa e não se detém apenas na usurpação de bens materiais. Na verdade, qual um “gênio maligno” (e me perdoe Descartes pelo mau uso do termo), o verme destrutivo de políticas públicas promotoras da equidade e do desenvolvimento produz agentes públicos e privados que, incessantemente, fabricam desinformação e ideias que são rapidamente absorvidas, via redes digitais instrumentalizadas, pela ignorância e psicopatias visíveis e perigosas de boa parte da população. Tudo isso cria no país um ambiente hostil e regressivo, avesso à recuperação do que foi destruído porque cria barreiras de difícil superação e alimenta a notória lentidão do poder público.
É farto o material coletado nos meios digitais de pessoas vestidas com as cores pátrias dizendo barbaridades e imbecilidades que superam em muito a inventividade de um bom ficcionista. Já se tornou habitual recebermos pelas redes, como se fosse humor, centenas de filmagens de entrevistas com senhorinhas e senhorzões pançudos enrolados na bandeira dos EUA ou de Israel afirmando coisas alucinantes, tais como intervenções marcianas para destituir Lula, ele próprio considerado um clone sequencial porque o original já teria falecido há anos.
Ao contrário do riso, a quantidade interminável desses depoimentos, um mais constrangedor do que o outro, me provoca tristeza civil, além da certeza de que é preciso reverter esse quadro com urgência. Não apenas porque entendo que a solidariedade com o outro é cláusula pétrea de quem se considera minimamente humano e racional, mas porque os que hoje oram para pneus, amanhã podem portar um fuzil AK-47 e provocar assassinatos ao bel prazer da vontade de uma mente insuflada pelo ódio de classe, de gênero, de xenofobia, de machismo, entre tantas outras barbáries. Exagero? Se olharmos acima do Equador no nosso hemisfério, constataremos que isso ocorre com insana frequência nos EUA, cuja bandeira foi venerada pelos “patriotas” de extrema direita no último 7 de setembro, clamando pela impunidade dos que pretenderam reimplantar a ditadura militar no Brasil.
Caminhando para o final de seu terceiro ano, o governo segue enfrentando dificuldades de grandes proporções com um Congresso de maioria reacionária e antipopular, frágil estabilidade no cumprimento da democracia pelas Forças Armadas e uma elite ávida por acumular capital em detrimento de uma maioria superlativa que empobrece no trabalho vil que o neoliberalismo atual proporciona. A reconstrução, lema inicial do governo, ainda tem muito chão pela frente, apesar de ter obtido nesses dois anos e nove meses avanços extraordinários em várias frentes.
Se a situação difícil é compreensível, o risco escancarado à manutenção da democracia, dos direitos e de políticas públicas de equidade clamam por celeridade, e isso implica na resolução de quadros distópicos que se apresentam diariamente. Neste momento em que escrevo, a manchete é a ameaça do uso militar dos EUA para defender o líder da organização criminosa que culminou no 8/1/2023.
A situação permanece grave, mas isso não quer dizer que não há reconstrução ou conquistas que recuperam paulatinamente os direitos da cidadania. Os exemplos são muitos e talvez o principal deles seja no campo jurídico-político, expresso no primeiro processo judicial que pode levar à punição os chefes da gangue que quis derrubar o Estado de direito no país. Somos conhecidos como o país campeão da impunidade, onde todos os golpes de Estado foram anistiados, com o perdão sempre favorecendo a cultura do golpismo antidemocrático. Hoje temos a possibilidade de começar a reverter essa má fama e rever, com justiça, nosso passado que suportou totalitarismos.
Mas chamo a atenção para o que está institucionalmente acontecendo nas políticas públicas de leitura e escrita. Após longa caminhada no contexto difícil da nação, MinC e MEC deram os primeiros e decisivos passos institucionais para dar consequência prática às diretrizes da Lei 13.696/2018 da Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE), regulamentada em setembro de 2024.
Os quatro últimos meses foram marcados pela institucionalização do principal desígnio da PNLE: a criação e implantação do novo Plano Nacional do Livro e Leitura – PNLL 2025-2035. Foram designados os membros do governo e da sociedade civil dos Conselhos Diretivo e Consultivo do PNLL, assim como a Coordenação Executiva que se encarregará da implementação do PNLL decenal e do bom encaminhamento dos projetos, programas e ações de formação de pessoas leitoras.
Com orçamentos restritos tanto na cultura quanto na educação, e com um prejudicial atraso na sua implantação, mesmo assim há com o que nos animarmos, e espero que esse alento possa se traduzir em participação ampliada, iniciativas, cooperação e, principalmente, unicidade em torno do novo texto de objetivos e metas do PNLL decenal aprovado pelo Conselho Diretivo.
Há que realçar a metodologia de construção do Plano que, mais uma vez, se iniciou com um processo de escutas conduzidas por consultores independentes de todas as entidades nacionais envolvidas no tema. Essas escutas e estudos formalizaram-se em um texto-base que foi exposto e debatido em reuniões com ativistas em várias regiões do país. O processo se encerrou com a consulta pública virtual do texto, que recebeu mais de 1.600 sugestões. Essas sugestões foram submetidas ao Conselho Diretivo, que estabeleceu o texto final que será convertido em decreto para começar a vigorar.
Também anoto que MinC e MEC estão institucionalmente mais comprometidos com o PNLL se compararmos ao primeiro Plano, não somente porque obedecem à determinação da lei que os designa como responsáveis, mas porque há uma real determinação em viabilizá-lo. Em paralelo ao processo de reconstrução do PNLL, os ministérios estabeleceram os primeiros programas comuns, que agora fazem parte dos objetivos e metas nos próximos dez anos, como o PNLD Literário, voltado a fornecer livros às bibliotecas públicas e comunitárias, a retomada do Prêmio Vivaleitura e, com o Ministério das Cidades, a implantação de pontos de leitura nos condomínios do Minha Casa, Minha Vida.
Em um cenário político com agentes que tentam retomar o retrocesso, abre-se um novo capítulo na luta democrática por políticas públicas de formação de pessoas leitoras. E é sempre bom recordar que essa construção será melhor e maior se houver engajamento e pressão da sociedade organizada.