afago a espessura oca das utopias
e, amplamente, respiro
as sombras do mundo.
nas dobras da memória de nossos pais,
adormeço,
na memória dos seus filhos,
memória de seus netos mais altivos
— e livres —
até dos que nunca tivermos.
(nas esquinas do mundo a quatro mãos, de Leonardo Tonus)
Neste mês em que recordamos os 201 anos da Independência do Brasil, o imaginário “grito do Ipiranga” representando o nascimento de um país liberto do colonialismo nos chega trôpego. Como há dois séculos, o país está longe de atingir os patamares de uma sociedade razoavelmente equânime e justa, voltada a construir uma comunidade de sujeitos livres e autônomos.
Julho passado, primeiro mês do segundo semestre do governo de reconstrução nacional no Brasil, foi marcado por cruéis acontecimentos que demonstraram inequivocamente o que seguimos enfrentando após as ações nefastas da ultradireita que governou o país no quadriênio 2019-2022. Tenta-se manter aqui e ali o que o obscurantismo regressivo buscou perpetuar em nível federal, com particular prazer orgástico, ao realçar e incentivar o pior da nossa história: abuso de poder por agentes do Estado, gerando violência contra a população, e deliberada política de dizimação do pensamento crítico de gerações atuais e futuras. Tudo temperado pela permanente exposição dos podres poderes do sistema político liderado por simulacros de partidos e por velhos patriarcas e seus herdeiros dinásticos.
A matança em nome da vingança corporativa em Guarujá, litoral de São Paulo, pela PM paulista, segmento local das polícias estaduais militarizadas criadas na ditadura militar, realizada à moda dos justiceiros que abominam o Estado de Direito, condiz perfeitamente com as revelações dos atos criminosos e anticonstitucionais revelados nas CPIs em andamento no Congresso Nacional. Atos que continuam sendo defendidos por porta-vozes despudorados, com retórica vazia e fascistoide, dos muitos pseudopartidos que não representam outra coisa senão interesses inconfessáveis de segmentos fundamentalistas ou aproveitadores de benesses de um sistema político que ainda vive na inconstância de uma frágil democracia representativa. Tão frágil que, passados dois séculos de libertação do colonialismo, ainda vive sob o pavor da eventual intervenção armada das forças que deveriam ter como única missão proteger o país de invasores estrangeiros.
Esses acontecimentos brutais que nos desnudam, e expõem nossas contradições como um dos países mais promissores economicamente no planeta, também são condizentes com o ato material e simbólico do governo do Estado de São Paulo em recusar receber os livros didáticos para o sistema escolar do tradicionalíssimo e plural Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), gerenciado pelo MEC há 80 anos. Se não bastassem as cifras milionárias recusadas pelo poder estadual que, ao serem recusadas, onerarão as finanças locais, a decisão de criar um apartheid educacional em São Paulo revela, mais uma vez, a memorável frase do grande educador Darcy Ribeiro: “A crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”.
Infelizmente, os dois nefastos acontecimentos paulistas em julho não se restringem ao chamado “território bandeirante”, mas se repetem, mesmo em outras sinistras modalidades e acontecimentos, por todo o Brasil. Na verdade, salvo elogiosos períodos históricos e iniciativas pontuais que condicionaram o uso do poder ao respeito aos direitos humanos, há um padrão na violência dos agentes do Estado sobre a maioria da população pobre, preta e jovem, que se soma ao desdém premeditado de programas educacionais voltados para treinar mão de obra preferencialmente barata. Violação de direitos pela brutalidade repressiva aos mais pobres se soma à prática de nunca formar cidadãos e cidadãs com consciência para decidir a partir de habilidades técnicas adquiridas pelo estudo e por investimentos continuados na formação em cidadania.
Insisto que a ausência persistente de políticas públicas atentas a essas conexões bárbaras e introjetadas no nosso cotidiano, e que somente podem ser compreendidas pela análise profunda do que fomos, do que somos e do que queremos ser enquanto país, é fator determinante para se manter o cruel status quo em que vivemos. O contrário, ou seja, a compreensão estratégica de que políticas públicas estruturantes nas áreas formadoras da cidadania, em destaque para a educação e a cultura, são a única possibilidade de construirmos uma sociedade que pensa e age dentro das mínimas regras da civilidade onde a violência e o terror sejam exceções e não o cotidiano.
Para se chegar a essa compreensão política é importante ler a ação policial violenta do Guarujá na mesma dimensão das justificativas que querem abolir os livros plurais do PNLD pela uniformidade de conceitos, visões de mundo e das diversas ciências utilizando “materiais próprios” do Estado de São Paulo. Esta “uniformidade”, que recusa a diversidade da ciência e da formação cultural brasileira, fruto de uma única perspectiva, de um único dirigente político que não dialoga com a sociedade e com os intelectuais e pesquisadores, revela uma das piores facetas do que se convencionou chamar “escola sem partido”, bandeira da ultradireita que já demonstrou a que veio.
Não nos faltaram e não nos faltam mentes e programas profundamente plurais, inteligentes e inovadores da melhor tecnologia educacional fundamentada em valores democráticos e no reconhecimento da absoluta diversidade que é formado o país e seus múltiplos povos e territórios. Assim como não faltam mentes e programas eficientes para o trato da segurança pública e o uso racional da força no Estado de Direito. A persistência dos traços cruéis da dominação no nosso país, que produzem “acontecimentos” como os que estamos tratando aqui, é política e só a unidade ativa dos democratas poderá extirpar essa odiosa prática.
A introdução da análise política como ponto central do debate educacional ou da segurança pública, assim como em outros vetores estruturantes do país, dá o peso adequado às críticas que colocam demasiada responsabilidade nos suportes e nas novas tecnologias às barbáries cometidas por governantes. Do meu ponto de vista, se não entendermos as tecnologias como instrumentos para a ação do ser humano, para o bem ou para o mal, cometeremos erro crasso de análise.
Ouvi muitas críticas à nefasta medida do governo paulista que excluiu os livros em papel do PNLD, centrando fogo no suporte virtual, na leitura digital. Já expressei várias vezes nessa coluna minha posição a favor do uso das “textualidades eletrônicas”. Assim como expressei também que a persistência do livro em papel, por suas múltiplas qualidades benéficas à construção de cérebros com capacidade de cognição total, imprescindíveis na formação principalmente da primeira infância, já está mais que demonstrada por inúmeros estudos pedagógicos, psicológicos e neurocientíficos. Se os estudos e pesquisas não bastassem, já há escolas espalhadas pelo mundo e países como a Suécia que estão regressando ao uso do livro impresso porque somente a leitura digital não é suficiente para o desenvolvimento pleno do estudante.
Se a crítica ao uso exclusivo dos meios digitais para a educação é necessária, é preciso também a situar num contexto no qual analisemos a floresta e não meia dúzia de árvores. E a “floresta” aqui deve ser vista pela ótica da política pública que se está tentando impor por determinados governantes. Alguns voltam-se para a legítima construção do poder como expressão da polis, outros voltam-se para construir o poder de seu grupo de interesses. Para esses últimos terem algum êxito, só há uma saída a longo prazo: impor sua vontade a simulacros de cidadãos ceifados do seu direito de construção de pensamento crítico, aqueles que não conseguem ler o mundo e exercer a autonomia. Que os governantes comprometidos com a democracia includente priorizem as políticas públicas que impeçam a consumação da barbárie.