Qual novo em 2024?

Começaremos o ano de 2024 encarando a resolução para problemas tão básicos quanto necessários a uma humanidade renovada?
Ilustração: Miguel Rodrigues
01/01/2024

Este 1º de janeiro tem um novo número: 2024. Impositivo, regulará nossas vidas nos próximos 366 dias. Em outros calendários, diferentes do gregoriano, estaremos ou à frente, como o islâmico que marca o ano de 1445-1446 no mesmo período, ou atrás, como no chinês, que apontará o ano de 4721 a partir do nosso 10 de fevereiro. Lembro que estamos no mesmo planeta e os números em litígio nos contam histórias e civilizações milenares que foram se construindo e produzindo simbologias, cenários e futuros desenhados pelo que acumularam.

Esses acúmulos, e a história pesquisada pelas diversas disciplinas das humanidades, das ciências físicas, biológicas e exatas, nos permitem dizer: feliz ano novo para todos e todas cada vez que um desses calendários iniciarem um novo ciclo de contagem dos nossos dias. O aparente conflito dos números, na verdade, demonstra uma trajetória do ser humano no tempo contabilizado por suas culturas em suas diversidades históricas, antropológicas, filosóficas, geográficas, entre tantas outras possibilidades objetivas e subjetivas.

Parece um final feliz termos a possibilidade lógica de dizer Feliz ano novo!

O que me pergunto é de qual novo estamos tratando quando nos cumprimentamos: o que diz respeito a algo que acabou de surgir no tempo, como um objeto adquirido recém-saído da fábrica, ou algo que apesar de já ter surgido no tempo e no espaço consegue se renovar, se oxigenar, se recompor para melhor?

Não é uma reflexão simples, mas convivemos com ela na música que cola nos brasileiros todos os anos neste período de festas: “hoje é um novo dia, de um novo tempo…”. A bem produzida mensagem nos sorri com rostos conhecidos todos os anos e, no entanto, os mesmos produtores do “novo tempo” fazem tudo igual ano após ano: noticiários que se confundem com editoriais da empresa; entretenimento quase sempre alienante; parcialidade na exaltação de valores sociais conservadores, entre outros procedimentos estrategicamente projetados em seus planos de negócios. Ou seja, o novo aqui é apenas novidade e tem como missão central preservar o status quo que sustenta todas as feridas à mostra no flagelado planeta que habitamos.

Tudo isso seria um exercício diletante se não implicasse nas nossas vidas. O exemplo acima é ilustrativo, talvez didático, mas está longe de ser o mais significativo ao ocultar o verdadeiro sentido do novo que nos falta sempre que nos cumprimentamos com olhos de esperança.

Começaremos o novo ano de 2024 interrompendo o genocídio de Gaza e a guerra na Ucrânia que já mataram milhares, principalmente crianças? Ou equalizando as oportunidades para todos e todas que estão sem teto, sem comida, sem trabalho, sem escola, sem acesso aos direitos básicos da cidadania? Economistas, planejadores sociais, políticos de vários matizes ideológicas já demonstraram que uma pequena transferência de riqueza do 1% do topo da pirâmide social para a base miserável erradicaria a fome dos sem futuro.

Começaremos o novo ano de 2024 desarmando o planeta que acumula recordes de assassinatos pela via do banditismo na sociedade ou do banditismo dos Estados e seus exércitos alimentados pela indústria armamentista que cresce vertiginosamente todos os anos? Valorizaremos a vida no lugar da morte provocada por doenças e repressão xenofóbica aos milhões de migrantes de suas terras? Ou por balas perdidas dirigidas aos jovens, pretos, periféricos e que nada têm a não ser a justa ânsia de viver?

Começaremos o novo ano de 2024 modificando nossos sistemas de produção de riquezas e bens? Teremos crescimento com sustentabilidade ambiental e humana, com equidade nas oportunidades, ao contrário do que se pratica hoje com a exaltação da nefasta meritocracia neoliberal? Estaremos ecologicamente equilibrados para sobrevivermos como espécie e restaurarmos o já destruído planeta como apregoam as várias conferências climáticas?

Começaremos o ano de 2024 encarando a resolução para problemas tão básicos quanto necessários a uma humanidade renovada? Me refiro ao direito à educação de excelência para todas as pessoas, com a valorização da cultura, da leitura e da escrita, do respeito a todos os gêneros, raças e opções sexuais, assim como o respeito aos que creem e aos que não creem na prática de sua religiosidade desligada de fanatismos e radicalidades discriminatórias e destrutivas. Instaurar o respeito pelo outro significa optar pela alteridade e não pelo egocentrismo dominante que impede que nos vejamos como seres coletivos, comunitários, gregários por natureza.

Fala-se muito em inovação como o conceito transformador necessário ao nosso tempo. Abstratamente posso concordar, mas é importante localizá-lo no cotidiano das pessoas e nas práticas sociais que vivemos neste tempo de sombras. Muitas vezes inovar significa recuperar, reconhecer, restaurar práticas e valores individuais e sociais que a humanidade se viu coagida a abandonar por interesses pautados pela voracidade anti-humanitária dos que visam apenas seus lucros financeiros concentradores de riqueza como nunca praticada em tal escala.

Tomo como exemplo a necessária valorização da leitura literária. Inovar seria descobrir um método ou aparelho infalível que ganhe a competição junto aos jovens e adultos pela satisfação da ansiedade insana proporcionada pelos gadgets eletrônicos e conquiste, miraculosamente, novos leitores? Ou inovar seria introduzir em escala nacional a leitura reflexiva, a leitura literária no coletivo desde os primeiros anos da criança na família e na escola e sem outro objetivo a não ser ler e desfrutar? Inovar não seria também aumentarmos cada vez mais as experiências literárias dos slams, dos saraus, dos encontros presenciais nas livrarias e bibliotecas e animá-los com convívio musical, gastronômico, afetivo, participativo da vida das mais diversas comunidades? Inovar não seria ampliarmos o que está dando certo na formação de leitores e leitoras com cidadania, empatia, compromisso coletivo, coisa que já acontece aos milhares no Brasil em muitas comunidades, em bibliotecas de acesso público, em escolas que não se corromperam para o produtivismo, entre tantos outros espaços?

Talvez essas incômodas reflexões não sejam a melhor sobremesa para o almoço do primeiro dia do novo ano, mas ao nos aproximarmos do final da primeira quadra deste século 21, que deveria ser do conhecimento e da informação, temos que ter a responsabilidade de defender e procurar construir uma sociedade que se distancie cada vez mais dos representantes populistas e fascistas que insistem em ser hegemônicos em nosso país e em muitos outros pontos do globo. E não faremos isso se não enfrentarmos o que os impulsiona: a manutenção das desigualdades. Ou, para não perder o mote desta coluna, o medo do verdadeiro novo, daquele que pode transformar.

Não sou um otimista, sou mais adepto do esperançar freiriano, da ação ativa que pode provocar mudanças substantivas. Em outros períodos afirmei que passávamos por tempos de oportunidades, kayrós. Naquele período construímos o PNLL (Plano Nacional do Livro e Leitura) resultando em pequeno, mas significativo avanço nessa área. Gosto de pensar que mais um tempo similar, embora não tão profundo, se abriu, e que é preciso atuar com firmeza e construir possibilidades.

Apesar do cenário de destruição após o banditismo que assaltou a república nos últimos anos, é possível tornar 2024 um marco de transformação importante na reconstrução do país. As notícias do final de 2023 na macroeconomia foram animadoras até nas análises de jornalistas e economistas conservadores, com inflação sob controle e expectativa de crescimento. Este fato pavimenta outras ações de políticas públicas que podem caracterizar avanços pontuais, mas estratégicos, como o direito à leitura.

Com este espírito de ação é que abraço neste 2024 os que lutam em funções públicas ou na sociedade pela formação de leitores e leitoras. Já anunciado pelo MinC e MEC, espero festejar a aplicação da Lei da PNLE (Política Nacional de Leitura e Escrita) e ver elaborado e promulgado o novo PNLL decenal. Sem esmorecimentos!

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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