Professores para quê?

O sucateamento do sistema educacional e os baixos salários dos professores colocam o Brasil sempre entre os piores índices educacionais do mundo
Ilustração: Thiago Lucas
01/11/2023

Para minha mãe, professora Adair Braz Marques, in memoriam, que me passou a paixão de ser educador.

Escrevo esta coluna às vésperas dos 60 anos do Decreto 52.682, promulgado a 14/10/1963. Trata-se do texto que instituiu o 15 de outubro como feriado nacional em homenagem aos docentes, o conhecido Dia do Professor. Desde aquela data, espalharam-se as festas comemorativas nas escolas, eventuais “presentinhos” aos mestres e mestras e reconhecimentos simbólicos e respeitosos de um trabalho considerado essencial.

A data reverbera na memória de quem passou a maior parte de sua vida nas escolas e nas universidades públicas. Ser aluno ou professor sempre foi, privilegiadamente, um dado compulsório na minha família, a começar por minha mãe professora que somava com seus irmãos a façanha de ter seis professores dentre os oito irmãos. Não que o fato de ser “compulsório” não me tornasse feliz na escolha que fiz de também ser um docente. Ao contrário, de tantas atividades que exerci, o “ser professor” foi e continua sendo a que mais me encanta e a que mais me emociona. Um encontro ao acaso com ex-alunos ou a mensagem de reconhecimento que chega pelos ventos reais e virtuais, sempre me levam à sala de aula, às inúmeras convivências praticadas no recinto escolar e ao calor humano que a profissão exige e proporciona. “Professor”, ainda me chamam assim, é o título que carrego com prazer, com alegria, sempre me buscando na célebre frase de Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas: “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”.

Hoje, a data, salvo raras exceções, é vista mais como um feriado a ser aproveitado para o ócio. Afinal, o que há para comemorar? Ou, colocando de outra maneira, a este 15 de outubro caberia algo a mais que não seja encará-lo como momento símbolo de resiliência dos profissionais da educação e luta por uma escola realmente comprometida com o desenvolvimento humano de sua gente?

Não obstante, mais de 2,5 milhões de professores e professoras que existem hoje no Brasil continuam a fazer o impossível para reverter o ainda trágico cenário do sistema educacional brasileiro. Os dados são impiedosos para com nossas elites responsáveis pela condução política-administrativa do país há séculos. Destaco dois elementos importantes que são um retrato acabado da nossa miséria escolar, um demonstra resultados, o outro aponta uma das causas desses resultados.

Comecemos pela figura central de todo esforço educacional: o estudante e sua formação, objetivo maior de toda ação responsável de política pública formadora. A última avaliação do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), estudo da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), registrou que o Brasil está entre as nações com mais baixo rendimento escolar nas áreas de matemática, ciências e leitura, ocupando a 52ª posição. Em matemática, estamos juntos aos dez países com pior desempenho no mundo.

O segundo elemento é o baixo reconhecimento salarial dos profissionais da educação, popularizado por Chico Anysio e o personagem Professor Raimundo no seu inesquecível bordão — “E o salário, óóó!”. A realidade, porém, não provoca risos ou chistes. Segundo dados também da OCDE, na sua pesquisa Education at a glance, de 2021, o Brasil ostenta o vergonhoso título de ser o país com o mais baixo piso salarial para professores do ensino fundamental dentre as quarenta nações pesquisadas.

Esses dois elementos apontados desestimulam a formação de docentes especializados em licenciaturas específicas, provocando deficiências na transmissão do conhecimento. Segundo a ótima matéria de Christina Queiroz na revista Pesquisa Fapesp publicada em outubro/2023, há um crescente desinteresse dos jovens em seguir a carreira no magistério, demonstrado pelo “número de concluintes de licenciaturas em áreas específicas que passou de 123 mil em 2010 para 111 mil em 2021”. Segundo a jornalista, que ouviu inúmeros pesquisadores, o “conjunto de dados indica que o país vivencia um quadro de apagão de professores”. A solução apontada seria “a urgência da criação de políticas de valorização da carreira docente e a adoção de reformulações curriculares”.

Entre várias abordagens interessantes, a reportagem avança no cotidiano das escolas de ensino fundamental e médio e escancara a realidade de que um enorme percentual de disciplinas, principalmente as de humanidades, são ministradas por docentes sem formação específica na área de conhecimento. Por exemplo, professores formados em matemática ministrando aula de física no ensino médio, causando evidentes danos no processo de aprendizagem dos alunos ao abordarem apenas o “formalismo matemático” da física em detrimento de abordagens fenomenológicas, conceituais e experimentais, próprias do conhecimento de um licenciado em física, como denuncia o físico Matheus Monteiro Nascimento (UFRGS).

Não se trata de firulas acadêmicas, mas de real prejuízo na formação de nossas crianças e jovens no exercício de seus direitos constitucionais de acesso à educação digna. A mesma matéria da Revista Fapesp, segundo Alvana Bof, demonstra o déficit de profissionais: “Se todos os licenciados de 2010 a 2021 ministrassem aulas na disciplina que se formaram nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio em 2022, ainda assim o país teria dificuldades para suprir a demanda por docentes de artes em quinze estados, física em cinco, sociologia em três, matemática, língua portuguesa, língua estrangeira e geografia em um”. Arremata o sociólogo do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), Luiz Carlos Caseiro, que o cenário de falta de professores não está relacionado à falta de vagas nos cursos de licenciatura: “Em 2021, o país teve 2,8 milhões de vagas disponíveis, das quais somente 300 mil foram preenchidas. Isso significa que 2,5 milhões de vagas ficaram ociosas…”.

O conjunto de questões, aqui resumidas e dentre outras, é que constitui o sucateamento institucional do ensino por sucessivos governos nos diversos territórios, impedindo o exercício pleno da docência e a consequente formação integral do alunato. Docência que, conforme a Profa. Marilena Chauí em recente conferência na Unesp, é formação propriamente dita; é o professor atualizado e consciente da transversalidade que exerce na formação integral do estudante; sendo especialista, deve ser pedagogicamente polivalente.

Infelizmente, e para pesar de nosso presente e futuro, ainda estamos distantes desse ideal docente e dependemos do esforço individual dos mestres para conquistá-lo. A razão disso é a mesma que impede tantos direitos no país: o reacionarismo e o atraso de nossas elites, fenômeno escancarado pelo professor Darcy Ribeiro em seus textos. No ensaio O Brasil como problema, ele escreve:

O único fator causal inegável de nosso atraso é o caráter das classes dominantes brasileiras… Não há como negar que a culpa do atraso nos cabe é a nós, os ricos, os brancos, os educados, que impusemos, desde sempre, ao Brasil, a hegemonia de uma elite retrógrada, que só atua em seu próprio benefício.

Uma vez mais, é a política que está no centro da questão ao formular programas e planos inclusivos ou excludentes. No Brasil, marcado pelas relações de poder abusivas como o escravismo, as rupturas da disputa política por governos ditatoriais ou castradores de direitos civis fazem parte da nossa história e nada indica que tem data marcada o término dessa terrível prática. Sabemos que a democracia está sempre em construção, assim como a ideia de Nação, de Estado, de Polis, não são conceitos fechados, mas resultado de um estado permanente de disputas políticas entre os vários segmentos e interesses de uma sociedade.

Que saibamos refletir este 15 de outubro, Dia do Professor, de maneira plena, vivenciando-o criticamente, como um lembrete perene de cidadania a ser conquistada com a união imprescindível da Educação com a Cultura.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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