O imenso espaço do centro de convenções Ulysses Guimarães de Brasília foi suficiente para abrigar os 3 mil participantes da 4ª Conferência Nacional de Cultura/CNC, realizada de 4 a 8 de março pelo Ministério da Cultura. Mas nenhum espaço físico conseguiria conter a energia criativa e reivindicativa que emanava das salas, auditórios e corredores por intermédio dos participantes que representavam todas as atividades criativas de norte a sul do país. Foi também a Conferência com maior foco na inclusão da diversidade humana brasileira, aglutinando forças vivas dos territórios, dos movimentos sociais e das pautas identitárias. A força da transformação pela cultura se fez sentir num ato de beleza e encantamento com as múltiplas faces do mesmo Brasil.
Foram momentos intensos de reflexões sobre as políticas públicas de cultura para os que tiveram o privilégio de participar do retorno deste encontro após dez anos de ausência. O espetáculo de cada criador/a enfrentou o debate político acirrado em torno das prioridades da cultura brasileira na arena do exercício da democracia.
Um ponto comum unia as vozes das delegações: a justa crítica ao quanto fomos ceifados no período Temer/Bolsonaro em nosso direito de exigir e de receber do Estado o necessário apoio às atividades culturais nas suas múltiplas diversidades e regionalidades. São notórias as práticas dos detentores do poder público que têm vocação totalitária ao assumirem governos aqui ou em qualquer lugar do planeta: cercear as liberdades democráticas significa bombardear imediatamente a cultura e a educação.
Não precisarei aqui elencar tudo o que foi cruelmente destruído na política pública cultural e educacional nesses seis anos dos dois governos anteriores, mas os ecos dessa destruição, assim como os gritos de reconquista, soaram forte na vibrante CNC. Frente à constatação do que se perdeu, foi forte o embate político em torno do que seria prioritário, seja na disputa entre as linguagens artísticas, seja nas regionalidades e habilitações profissionais dos trabalhadores/as da cultura. Irmanados pela retomada da cultura para todos e todas, nem sempre o debate teve a serenidade e a lucidez necessárias aos momentos de reconstrução. O saldo, porém, foi positivo a meu ver. As 30 prioridades para o próximo Plano Nacional de Cultura, revisada incansavelmente pelas plenárias setoriais e pela plenária final, mostram ambições legítimas e o quanto há que se caminhar nos próximos dez anos para retomarmos patamares anteriormente conquistados e avançar ainda mais.
No que se refere às políticas públicas para o livro, a leitura, a literatura, a escrita e as bibliotecas, tomando-se em conta as diretrizes e objetivos da Lei 13.696/2018, que instituiu a Política Nacional de Leitura e Escrita/PNLE (“Lei Castilho”), e que determinou a construção decenal dos próximos Planos Nacionais do Livro e da Leitura/PNLL, as notícias vindas da Secretaria de Formação, Livro e Leitura-Sefli/MinC, e o que se aprovou como uma das prioridades, figurando entre as 30 propostas finais da CNC, foram alentadoras e agora necessitarão do contínuo ativismo de todos/as para serem efetivamente implementadas.
Em primeiro lugar, as comunicações do secretário da Sefli, Fabiano Piúba, e do diretor da Diretoria do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas/DLLLB, Jéferson Assumção, anunciaram a iminente regulamentação da Lei da PNLE pelo presidente Lula e os primeiros estudos para o novo PNLL, por intermédio de uma consultoria junto ao MinC e OEI (Organização dos Estados Ibero-americanos), da qual honrosamente faço parte. Pelo planejamento da Sefli, em consonância com o MEC, até o final de 2024 deverá estar concluído o processo de redação e consulta ampla à sociedade do PNLL 2024-2034. Muito trabalho e articulações ainda à frente, mas é sempre importante lembrar que o PNLL do Decreto 9.930/2011 está sendo desrespeitado desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff e desde 2018 está virtualmente superado pela promulgação da Lei da PNLE que impõe, virtuosamente, nova metodologia para a política pública do setor.
É importante atentarmos para essas mudanças, resultado da paralisia político-institucional por parte dos governos antidemocráticos que tivemos recentemente e as novas possibilidades abertas pela Lei da PNLE. Essa questão foi reiterada nas reuniões do setorial LLLEB na CNC e precisa ser compreendida por todos e todas. Com a Lei 13.696 sendo regulamentada pelo atual governo, abriremos a possibilidade de estruturar as políticas federais voltadas para o direito à leitura e à formação de pessoas leitoras de maneira racional e eficiente.
Temos a Lei da PNLE como determinante político-institucional, estabelecendo valores, conceitos, diretrizes e objetivos que determinarão o conteúdo do novo PNLL decenal que, por sua vez, deverá ser pragmático ao desenhar programas, projetos e ações com características de real planejamento — metas e objetivos, cronogramas, responsabilidades, origem dos recursos e acompanhamento de sua eficácia —, cujo resultado em dez anos constará resultados bons ou maus na formação de leitores e leitoras no Brasil. Atingiremos, com esse modelo de gestão pública, a ideia almejada de uma Política de Estado para o setor, supragovernamental e suprapartidária, duradoura como toda política estruturante deve ser. Em síntese, formaríamos o triângulo POLÍTICA – PLANO – PROGRAMAS/AÇÕES, cada um em suas funções e em sincronia.
A conquista deste novo patamar deverá desnudar o famoso e equivocado jargão brasileiro de que “temos leis que pegam e leis que não pegam”. Paralisada desde 2018, quando de sua promulgação, a Lei da PNLE foi classificada por alguns como integrante deste perigoso conceito paralisante. Essa ideia muito difundida de “pega ou não pega” é mais um elemento da nossa despolitização enquanto cidadãos de um país que se quer democrático. Não se trata de uma lei “pegar/não pegar”, como fruto de algo difuso que paira sobre a nação. Geralmente emancipadoras e um passo à frente nas políticas públicas democráticas, uma lei que “não pega” não é executada porque há interesses múltiplos que a obstruem objetivamente. Essa obstrução intencional e nada metafísica é, muitas vezes, o último ato do atraso frente aos novos rumos de inclusão de uma nova legislação renovadora. Não é preciso muita pesquisa para demonstrar que leis de interesse do atraso são diligentemente aplicadas por governos reacionários. Ao mesmo tempo, as emancipadoras recebem a alcunha de “não pegou” e tudo entra no rol de outro conceito equivocado conhecido como “o jeitinho brasileiro”, igualmente paralisante.
É preciso sair deste senso comum que atribui ao abstrato a resistência ao avanço de nossa institucionalidade enquanto país democrático. Leis devem ser a expressão institucionalizada da vontade da maioria da população em um regime não totalitário e dentro das normas constitucionais. Se aprovadas pelos representantes legislativos devem ser republicanamente aplicadas e ganharem a vigilância cívica da cidadania.
Em segundo lugar, ressalto aqui uma das prioridades eleitas na CNC que poderá propiciar um salto de qualidade na gestão pública da Lei da PNLE. Trata-se de criar e implementar o Instituto Brasileiro de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas e um fundo de fomento específico para o setor. A proposta da CNC atende a uma antiga reivindicação do LLLEB ao centralizar em uma autarquia, como as atuais Ancine ou Ibram, todas as ações de política pública do setor, além de gerenciar o fundo de desenvolvimento que seria criado para dar materialidade aos seus projetos e ações.
Com legitimidade para dialogar para além da Cultura e da Educação, envolvendo todos os ministérios na transversalidade da formação de leitores/as, a síntese entre a aplicação da PNLE e a criação de uma autarquia e de um fundo garantirá a real institucionalidade que possibilitará política públicas permanentes para o setor. Essa é a possibilidade que nos desafia no presente!