Dois livros lançados recentemente analisam movimentos do passado que iluminam nosso difícil presente. Os elos que os unem são muitos, apesar das perspectivas diferentes de análise dos seus autores. Ambos mostram a permanência da infindável luta pela equidade e contra os totalitarismos.
O primeiro deles é um relançamento, em edição ampliada e comemorativa aos 40 anos de um clássico na história do movimento operário brasileiro — Nem pátria, nem patrão, de Francisco Foot Hardman (Unesp, 2024).
De repente, percebi que se passaram 40 anos deste livro admirável e de que minha amizade com Foot já está perto de completar 50 anos. Quando alguém chega neste patamar, não há como distinguir a obra de seu criador, ainda mais porque, ao contrário de muitos, Foot manteve-se firme na principal questão que mobilizou a nossa geração: a luta pela democracia contra os totalitarismos e a radicalidade de estar ao lado dos excluídos pela perversidade social e econômica do capitalismo cada vez mais destrutivo.
Hoje comemoramos os 40 anos da primeira edição deste texto referencial, mas compartilho que meu primeiro encontro com o autor também foi numa comemoração. Creio que em 1976/77 na sede do Sindicato dos Coureiros, então próximo da zona cerealista de São Paulo, dirigido à época pelo companheiro Paulo Skromov, o mesmo que viria a ser um dos sindicalistas fundadores do PT. Era um 1º de Maio e, sob o terror dos generais, juntaram-se não mais que duas dezenas de militantes de organizações políticas afins que chegavam separadamente, silenciosamente, olhando para trás e para os lados, com o temor e o cuidado se estavam sendo seguidos pela polícia política ou seus “cachorros”.
Designado pela minha organização política à época, fui levar a mensagem do ainda incipiente movimento estudantil mas que já passara pela organização dos protestos contra o assassinato do estudante Alexandre Vannucchi Leme em 1973 e, em 1975, contra o assassinato do jornalista Vladimir Herzog. O jovem professor, que representou o também incipiente movimento sindical docente naquela celebração do 1º de Maio clandestino, era Francisco Foot Hardman. E mesmo as rígidas regras de segurança, quando tínhamos quase que sussurrar os nossos discursos para não atrair a atenção externa, não impediram de notar o entusiasmo e a determinação de Foot naquele momento.
Talvez tenha sido essa celebração quase silente, quando cantamos todos juntos, como um murmúrio, a Internacional, que selou nossa amizade iniciada no compromisso por uma terra sem pátria e sem patrão.
O final dos anos 70 nos reuniu novamente e, dessa vez, em torno de uma coleção de livros ousados para a época e que, quase provocativamente, chamamos de “Materialismo Histórico”, na heroica empreitada da Kayrós Livraria e Editora, empresa que abri junto com os amigos Magali Nogueira e Moisés Limonad. Foot esteve conosco como colaborador naquele espaço que se tornaria um ponto de encontro de artistas “underground” paulistanos e frequentado pela esquerda que buscava bibliografias e encontrava um ambiente de franca fraternidade.
Em 1983, comemoramos a edição pela prestigiosa Brasiliense da primeira edição de Nem pátria, nem patrão. Analisando retrospectivamente, esse texto foi igualmente ousado para a época, não apenas porque tocava em questões ainda não engolidas pelos generais, mas porque, ao colocar os anarquistas no centro do debate, apontava outras possibilidades a todos os grupos de esquerda que se reestruturavam partidariamente no movimento oposto aos ideais anarquistas de horizontalidade. Era Foot novamente, com entusiasmo e argumentos sólidos, nos mostrando que não podemos nunca nos conformar com qualquer limitação intelectual, angústia permanente do grande Mário Pedrosa que viria a ser objeto de minha futura tese de doutorado.
Imediatamente reeditado em 1984, Nem pátria, nem patrão realçou igualmente não apenas o pesquisador rigoroso, honesto intelectualmente, comprometido socialmente, mas a belíssima escrita de Foot. Desde aquela época o considerei, como ainda o considero, o melhor escritor de nossa geração de intelectuais formados nos anos 70. Coisa rara, Foot imprime beleza literária às análises históricas e políticas que pesquisa e, talvez por essa inclinação inescapável de escritor, escolheu o tema que é seminal neste livro que é a cultura operária dos anarquistas.
Por todas essas razões é que fiquei muito feliz em 2002, então na presidência da editora Unesp, acolher a 3ª edição revista e ampliada deste clássico. E parabenizo a editora Unesp de ter persistido com o autor e agora reeditar novamente, ampliada e com textos que abordam nossas mazelas sociais e políticas contemporâneas, essa edição dos 40 anos.
Ao revelar, ao demonstrar e exaltar a política operária anarquista como uma verdadeira revolução na vida das pessoas, Foot foi muito importante para a reflexão intelectual e conduta política de muitos ativistas e futuros pesquisadores. Pois seu livro não apenas narra, resgata ou analisa a história desses homens e mulheres gigantes no princípio do século 20 em nosso capitalismo violento e excludente, mas vai além ao tratar esse movimento pela sua permanência. Sua escrita consegue captar a dinâmica e a vitalidade de uma força cultural anarquista que, de meu ponto de vista, está presente de maneira viva em todos os movimentos dos chamados “excluídos da Terra”.
Eu que virei um andarilho em todo o país pelo direito à leitura e à escrita, percebo claramente esses sinais que insistem e se ampliam na luta emancipatória dos trabalhadores, das juventudes, das mulheres, dos indígenas, dos negros, dos movimentos sociais, pelas incontáveis manifestações literárias que se expressam nos slams, nos saraus, nos chamados “autores periféricos” de nossas metrópoles e campos e que, de meu ponto de vista, é o que podemos entender hoje como a nossa melhor esperança de luz no fim deste ainda tenebroso túnel.
Alexandre Vannucchi Leme
O outro livro que realço aqui me tocou também profundamente, não apenas por tratar de um marco da retomada nos anos 1980 na luta contra a ditadura militar, mas porque ao narrar com a força da memória histórica e dos afetos familiares, mostra o quanto o poder público corrompido pelo totalitarismo e pela violência de Estado tem a capacidade de devastar o nosso íntimo, as nossas famílias, as nossas vidas.
Trata-se de Eu só disse meu nome, Alexandre Vannucchi Leme, de Camilo Vannuchi (Discurso Direto/I. Vladimir Herzog, 2024).
O título escolhido por Camilo sintetiza a agonia e a coragem de seu primo em segundo grau, meu ex-colega, e de tantos uspianos, morto pela ditadura militar em 17 de março de 1973 nas celas de tortura de um dos mais cruéis instrumentos da repressão política naquele período, o DOI-Codi. Arrastado para uma solitária após horas e horas de tortura, ele falava essa frase ouvida pelos presos, demonstrando que resistira à delação.
Camilo escreveu em meu exemplar: “Para o Castilho, uma história que também é tua”. Minha e de todos os jovens daquele horrendo período que tiveram coragem para dar início ao BASTA preso em nossas gargantas pela força das armas. A missa lotada na Catedral da Sé, ecumênica e liderada pela coragem de D. Paulo Evaristo Arns, foi o primeiro grande ato político contra a ditadura desde o AI-5. O medo que assaltava a todos nós ao chegar à Sé cercada pelos militares armados era enorme, mas gigantesca era nossa sede de justiça, momentos fielmente captados pelo autor.
A narrativa tem o dom do diálogo familiar, das prosas que poderiam ter acontecido, mostrando a diversidade de uma família do interior com estudantes vindo para a capital e se politizando, como aconteceu com tantos. Li e revi a USP dos anos 70 viva como nunca.
Foi com tristeza que também identifiquei a permanência de muitos horrores que atormentaram aqueles anos, saga de um país excludente e violento que passa pelos anarquistas de Foot e a história de Alexandre narrada por Camilo nesse livro que precisa ser lido.