Os que temem a alegria

Entre tantas lutas democráticas, batalhamos contra aqueles que desejam matar definitivamente a alegria
Ilustração: Thiago Lucas
01/07/2023

Em homenagem ao saudoso amigo José Mindlin, que me despertou para a frase de Montaigne: “Não faço nada sem alegria”.

A primavera espanhola acolheu mais uma vez a 82ª edição da Feira do Livro de Madri. O sol cálido que trazia um friozinho gostoso que chegava silencioso sobre o Parque do Retiro, em pleno centro urbano, complementava a vivacidade, o ânimo pulsante das centenas de barracas uniformes que se perfilavam oferecendo livros, conversas, encontros, reencontros e muitas, muitas histórias. De 26 de maio a 11 de junho, o histórico parque madrilenho foi cultura, educação, compartilhamento, diálogo, comprometimento, vida. Junto ao comércio dos livros, junto aos autógrafos e tietagem com os autores mais midiáticos, cresciam as mesas de debates e os seminários, inclusive o Leeriberoamericalee.com que tenho o prazer de coorganizar com o Instituto Emília (Dolores Prades e Inés Miret) há cinco anos, sempre junto com a Feira do Livro.

Regresso a São Paulo e dias depois mergulho novamente naquele clima de entrelaçamento com outros seres humanos sensíveis ao belo e ao sublime da literatura, das artes, das ciências e do conhecimento. Com um sol igualmente deslumbrante, um friozinho que caiu ao final do dia, e em uma praça de minha cidade em frente da mais linda fachada de estádio futebolístico que conheço, o icônico Pacaembu, visito A Feira do Livro em sua segunda edição. A nascente Feira idealizada e organizada pela Associação Quatro Cinco Um, dirigida pelo jornalista Paulo Werneck, é tão bonita quanto a veterana madrilenha. Sua juventude abrigou velhos e novos editores, novos e antigos autores, literaturas tradicionais e as insurgentes literaturas das nossas periferias, saberes do mundo ocidental europeizado e os que vêm das ancestralidades indígenas e de raízes africanas e negras. Discutiu-se o racismo, o xenofobismo, o sexismo que cria nossos apartheids cotidianos, mas também, assim como em Madri, celebrou-se a beleza, a leveza, as artes e os ofícios dos fazeres culturais que constroem sempre e nunca destroem, ou seja, o melhor que temos a oferecer ao planeta e a nós mesmos.

Ao escrever este texto revivo os sentimentos de estar nas duas em tão pouco tempo, milhares de quilômetros uma da outra, juntas nos meus olhos e sentidos. Ambas nas ruas, nas praças, nos parques, nas cidades. Os espaços públicos, as ruas, têm essa magia de nos fazer sentir libertos, como se as muitas ancestralidades da vida na pólis desde as ágoras, as praças medievais, e tantos outros recantos de compartilhamento urbano nos dessem a segurança de que estamos em espaço da coletividade, do ajuntamento humano, onde compartilhamos sonhos e lutas, onde somos a nossa utopia gregária.

E ao refletir sobre tudo isso, neste mar de boas sensações e de vibração do coletivo, da pólis que pulsa no movimento contrário de uma sociedade empurrada pela ganância de poderes econômicos neoliberais que isolam e individualizam tudo, não posso deixar de concluir que dentre todas as lutas democráticas e pela equidade e justiça social que enfrentamos nos dias de hoje, lutamos também pela alegria e contra aqueles que querem matá-la definitivamente.

Pensar por aí é também juntar Madri e São Paulo, Espanha e Brasil e, infelizmente, também muitos territórios deste planeta que insiste em ser azul celeste, mas que cada vez mais está ameaçado pelo cinzento das florestas e vidas queimadas e pelas ameaças que ressurgem das ideologias fascistas que sabem que precisam fazer sufocar a alegria do viver para poderem triunfar seus “podres poderes”.

Se aqui, e apesar da derrota eleitoral do bando facínora em 2022, seguimos enfrentando o germe do fascismo, as eleições do final de maio na Espanha fizeram crescer a direita que já levou o país a 36 anos de obscurantismo ditatorial com Francisco Franco. Junto aos amigos e colegas espanhóis, democratas por convicção e prática política, recordei a angústia de todos e todas nós que lutaram para derrubar seis anos de governos inspirados no ódio e no incentivo à violência mais primitiva.

Nos corredores cheios de ar e vida das feiras de Madri e São Paulo, o oxigênio das liberdades de pensamento, de refletir e olhar o outro de múltiplas maneiras, a diversidade que acolhe o seu contrário em um diálogo que busca o entendimento, estavam estampados nos livros, nos escritores, nos livreiros, nos editores e, principalmente, nos leitores e leitoras que alegremente percorriam as bancas das letras dispostas linearmente em Madri ou de forma circular em São Paulo.

Como o famoso Dia de São Jorge/Jordi em Barcelona, onde os amigos e amantes se presenteiam livros e rosas, tudo se torna vida quando há ruas, livros e gente. Não é por acaso que a Feira de Madri realiza sua 82ª edição, mas tem 90 anos de história. Os anos em que não se realizou foram os anos iniciados com a guerra civil espanhola, quando a democracia e a liberdade foram encarceradas por Franco, somando-se à ascensão do nazismo e do fascismo que levou à Segunda Guerra Mundial. De 1937 até 1944, a Feira de Madri foi suspensa e os livros foram calados parcialmente na Espanha, ressurgindo plenamente apenas a partir de 1975, com a queda do generalíssimo.

Sempre é preciso lembrar que durante as ditaduras livros e ideias são os primeiros a serem censurados, queimados, permitindo-se apenas aqueles que o regime entende adequados para a tutela do povo. São livros sem alegria, manietados na sua legítima ânsia de estarem disputando o diálogo do pensamento e da alma humana. Mais do que isso, ditaduras e regimes antidemocráticos cerceiam o direito à leitura para todos e todas, elitizam e sacralizam os livros como se fossem objetos para poucos eleitos, retrocedendo séculos na história humana quando apenas os líderes religiosos ou das famílias abastadas tinham o poder da leitura. Como os seculares templos gigantescos que colocam os seres humanos em posição arrasadoramente subalterna aos deuses, as bibliotecas também foram construídas durante séculos como tabernáculos de saber distante, sacralizado e para poucos iniciados.

O importante é que já conquistamos outras perspectivas mais humanas e includentes. A perspectiva solar dos mercados de rua, das feiras dos livros convivendo com as intempéries do tempo e das agruras do espaço aberto, são um bom exemplo de que é escancarar e romper toda essa herança obscurantista e autoritária que persiste em discriminar, elitizar e impedir o acesso democrático à leitura. Pensando bem, mostram sua face mais mórbida e tenebrosa para a espécie humana: o seu veto à alegria.

As feiras de rua como a de Madri, São Paulo, Porto Alegre e tantas outras, assim como as bibliotecas públicas vivas que se reinventaram e as bibliotecas comunitárias que nascem pela ação dos territórios, como também as livrarias que insistem em se manter nas calçadas e não em espaços fechados, transmitem a todos nós a alegria gregária que toda violência fascista quer matar. Quando o inominável que nos (des)governou até há poucos meses exaltava-se com a notícia de que se abriam centenas de clubes de tiro e fechavam-se bibliotecas, o que se louvava era a tristeza da morte e não a alegria da vida. E isso não é pouco para os destinos de um país e para o seu povo.

Preservar a alegria significa preservá-la para todos e todas e isso só pode acontecer na democracia plena e no exercício dos direitos humanos, com escala de políticas públicas estruturantes e voltadas para a maioria da população. É luta contínua e urgente no contexto em que estamos no Brasil. É preciso encará-la com a necessidade de superar os desafios mais agudos, como a fome, o trabalho, a saúde, a moradia, mas com os olhos voltados para a dimensão cultural e educacional, onde a leitura é alicerce, a diversidade e múltiplas linguagens são premissas e o dever de realizar um mundo onde a alegria supere as tristezas cabe a todos nós.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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