Para um país com mais de 500 anos de história ligada à cultura e ao mundo ocidental, o Brasil possui poucas bibliotecas em relação ao número de habitantes, e são raras as centenárias. Essa escassez reflete nossas mazelas históricas no tratamento do direito à leitura e à escrita para todos os brasileiros. Uma pesquisa sumária aponta apenas 12 bibliotecas que ultrapassaram os 100 anos, incluindo a Biblioteca Mário de Andrade (BMA), de São Paulo, que celebra seu centenário em 2025. As pioneiras foram as ordens confessionais, como a da Ordem de São Bento em Salvador (443 anos) e em São Paulo (427 anos). O poder público só conseguiu implantar a sua mais antiga no século 19, a Biblioteca Nacional, com 215 anos. E isso também tem muito a dizer sobre o profundo problema da democratização do acesso à leitura no Brasil.
As poucas bibliotecas públicas centenárias são, em sua maioria, edifícios históricos portentosos com acervos de grande qualidade documental e literária. No entanto, são instituições frágeis, suscetíveis a verdadeiros atentados ao seu patrimônio cultural, histórico e material, a depender dos ventos políticos que se abatem sobre elas. Conforme a sanha destruidora de certas autoridades que deveriam incentivar e fomentar as bibliotecas, os resultados só não são piores devido à ação e resistência ativa dos bibliotecários e funcionários da cultura, às vezes apoiados pela sociedade civil. Essa fragilidade é a face do pouco valor simbólico e real que o país atribui a essas instituições democratizadoras da leitura e preservadoras da memória.
A BMA, cujo acervo é o segundo em importância de preservação no Brasil, atrás apenas da Biblioteca Nacional, é um exemplo dessa vulnerabilidade. Seu imponente edifício de 22 andares, projetado por Jacques Pilon, combina o modernismo com a influência art déco. Além do acervo, que inclui obras raras e itens únicos no mundo, a “Mário” foi ponto de encontro da mais profícua geração de intelectuais nos anos 1950 e 1960, que se reuniam em torno da “Leitura”, a estátua de seu átrio. Uma instituição como essa deveria ser motivo de orgulho e ter sua manutenção, evolução e expansão garantidas, mas a realidade de sua história centenária nem sempre foi a esperada.
Entre 2002 e 2005 participei dessa história porque a dirigi junto com a diretora técnica, a valorosa bibliotecária Marfísia Lancellotti. O contraste entre o que encontramos e a biblioteca reformada de hoje me incentiva a alertar que o que parece sólido pode se desmanchar no ar, a depender das autoridades públicas de plantão. Basta um governante com vontade de destruir para o retrocesso se instaurar, como houve recentemente no sepultamento de quase duas mil bibliotecas municipais entre 2019 e 2022.
Após uma grande reforma na BMA iniciada no governo Luiza Erundina, liderada pela secretária de Cultura Marilena Chauí, algumas conclusões e a implantação de novos equipamentos (como o ar-condicionado central) nos oito anos seguintes (governos Maluf e Pitta) necessitavam ser implantadas em continuidade administrativa. Mas o que vimos foi a deterioração dos serviços e do prédio.
O diagnóstico da primeira semana após nossa posse em 2002 apontava um quadro emergencial em vários setores, como detalhamos em um documento entregue à prefeita Marta Suplicy e ao secretário de Cultura Marco Aurélio Garcia. Dele, compartilho apenas alguns dos pontos nevrálgicos.
A situação predial era de “completa deterioração, inadequação e abandono”, impondo reformas em caráter emergencial, sob pena de perdas que poderiam ser irreversíveis no acervo. A prioridade básica era o sistema hidráulico, que estava em “ruínas” e causava “graves vazamentos de água quase diários”, inclusive no setor de obras raras; o prédio possuía vigilância inadequada, e os sistemas de segurança contra incêndio (extintores, hidrantes e detecção de fumaça/fogo) funcionavam precariamente ou não funcionavam, apesar de semi-instalados em reforma anterior. O ar-condicionado central (semi-instalado em 1992) não funcionava, e a eficiência de luminosidade da biblioteca era de apenas 40%. Havia problemas diuturnos de segurança, incluindo invasões nas torres e vândalos que ameaçavam o acervo. Esse quadro se completava nos serviços essenciais ao atendimento, como os sanitários públicos com uso inadequado, apresentando problemas seríssimos de higiene.
Os cuidados com o acervo e com as questões técnicas também apresentavam muitos problemas e precariedades. Alguns exemplos: não havia “nenhum inventário seguro” de qualquer das coleções especiais (obras raras, artes, ONU etc.), nem seus respectivos relatórios; no acervo de obras gerais a situação também era precária porque os livros estavam dispersos em dois endereços (prédio-sede e edifício da Biblioteca Presidente Kennedy, em Santo Amaro), o que impedia a contabilização e gestão. Somava-se a isto a biblioteca circulante, que estava em outro endereço, à Rua da Consolação, 1024, igualmente sem contabilização precisa. Os cuidados técnicos e administrativos adequados ao acervo mostraram-se igualmente urgentes, para superar o hercúleo esforço dos poucos bibliotecários que tentavam, sem apoio, manter a biblioteca organizada.
Igualmente problemática e com procedimentos arcaicos de gestão, a BMA sofria com as mazelas administrativas e seus parcos recursos humanos, dificultando fortemente um planejamento estratégico para uma biblioteca de seu porte que, na prática e legalmente, era considerada como uma pequena biblioteca de bairro. Mostrava-se também urgente uma reforma administrativa, dotando a biblioteca de autonomia e status de departamento condizente com seu porte e missão, além de dotá-la de recursos financeiros e humanos.
Com o apoio da prefeitura e com a especial colaboração dos servidores da biblioteca e da Secretaria de Cultura, enfrentamos os principais problemas, conseguimos resolver as urgências estruturais do prédio, equacionar razoavelmente a parte administrativa, recuperar o espaço público para o uso da população e propor um grande projeto de reforma da BMA, que foi incluída no Programa de Reabilitação do Centro de São Paulo — Ação Centro, com financiamento do BID e da própria prefeitura. À reforma predial, sugerimos torná-la departamento com maior autoridade e autonomia.
Destaco, entre as ações emergenciais: reforma total dos sanitários do público; melhorias na segurança, reforma hidráulica e otimização da iluminação e eficiência energética. Somaram-se iniciativas de tecnologia e acervo, como a aquisição de cerca de 10 mil novos itens, o início da digitalização com a Biblioteca Digital Multimídia e a criação da Sala Multimídia.
O eixo da política de resgate focou na reinserção da BMA no circuito cultural da cidade e na inclusão social ampla. O principal deles foi o Programa Colégio de São Paulo, que ofereceu 267 aulas abertas com docentes brasileiros e estrangeiros, agregando 36.253 pessoas em seus cursos livres e gratuitos. Junto com a atividade de extensão cultural, os frequentadores em eventos superaram a marca de 110 mil pessoas. Além disso, realizamos o Concurso de Crônicas 450 Anos de São Paulo (1.495 inscritos) e a criação da Associação de Amigos e Patronos da BMA, visando ao apoio da sociedade civil.
Encerramos o mandato com o relatório O resgate de uma biblioteca e com a sensação do dever cumprido, mas temerosos pela eventual descontinuidade do que havia apenas se iniciado.
Graças à fase histórica democrática, houve continuidade do que havia sido iniciado e, mesmo com a substituição do amplo projeto que fizemos, uma reforma foi realizada e a BMA conseguiu voltar a ser um espaço público vivo de formação, informação e transformação cultural, recuperando seu papel como biblioteca de referência, qualificando-se ainda mais sobre o que foi recuperado entre 2002 e 2005.
Dito isso, é forçosa a pergunta: um país que cuida de sua gente e quer realmente uma sociedade melhor precisa passar pelo que a centenária BMA passou? E pelo que poderá passar novamente, se não cuidarmos dela e de nosso país como cidadãos e cidadãs comprometidos com a equidade, a inclusão e a democracia?