Não tenho espaço em minha casa para maquiagem, não finjo na cara o que não sinto no coração.
(O elogia da loucura, Erasmo de Roterdã, 1509)
Aportamos no primeiro quarto do anunciado século 21, marco de tempo simbólico em que olhar o mundo à nossa volta não só me parece sensato, mas algo necessário para nossa (sobre)vivência. Mais do que nossas superações e afirmações pessoais e dos ganhos sociais cada vez mais rarefeitos — e ambos devem ser festejados nessa data —, olhar o mundo ao lado nesses tempos que costumamos chamar de “mundo louco”, onde tudo está “uma loucura”, é antes de tudo prudência, aquela que nos faz olhar o presente mirando o passado e vislumbrando o futuro.
Mas não nos basta apenas olhar, porque os olhos estão fatigados do tanto que se vê na interconectividade das hiperimagens comandadas por Musks e Zuckerbergs e utilizadas de forma a corromper o olhar crítico, desmobilizar as rebeldias e domesticar as eventuais reações não bovinas.
Apesar de estarmos na era da alta tecnologia, todo esse conjunto que define o mundo atual, que mescla normalização de relações violentas no cotidiano com a exaltação do pior que há em nós como espetáculo público e literaturas autoritárias, encontra similaridades em outros tempos que a humanidade enfrentou em momentos de profunda transição. A exposição Figures du Fou, no Museu do Louvre, nos lembra que antes da concepção contemporânea da loucura como doença mental, ela era atribuída aos que se rebelavam com o mundo em que viviam.
O título deste artigo não é simples coincidência com o mais recente filme do espanhol Pedro Almodóvar. O quarto ao lado, baseado no livro O que você está enfrentando, de Sigrid Nunez, e ganhador do Leão de Ouro, no Festival de Veneza, tem o mundo contemporâneo como protagonista. Assim o li, por ele olhei o mundo e compartilho com vocês.
As personagens de Julianne Moore e Tilda Swinton, intérpretes sensíveis do drama em torno da amizade visceral de duas mulheres, permeada pela morte de uma delas por suicídio, se mesclam com um olhar sobre e para o planeta e os seres humanos perdidos que o habitam nesse tristíssimo momento.
Almodóvar encerra em O quarto ao lado as angústias centrais do nosso tempo e as compõem como somente a genialidade de um grande artista pode realizar: com gestos, falas e toques sutis e econômicos, quase uma estética reversa da profusão e exuberância de cores, falas, gestos e toques de seus primeiros filmes e que o tornaram único no cinema.
Em meio à balburdia das redes sociais; da estridência vã dos coachs e influencers que nos inundam com fake news minuto a minuto; das seculares hipocrisias de salvadores de almas travestidos de curas e pastores; do fanatismo político e religioso que nos faz retroceder para os primórdios bárbaros da humanidade; de uma ultra direita cada vez mais próxima dos genocídios que um dia nos indignou; da crescente barbárie dos crimes de guerra que persistem nas zonas em conflito em todos os cantos da terra, seja como guerra regular ou extermínio cotidiano de pobres, mulheres, negros e vulneráveis; Almodóvar denuncia este triste mundo com a personalidade contundente de uma mulher moribunda e livre, autônoma, consciente, militante da paz sendo repórter de guerras, e dona de seu próprio destino.
A serena, e ao mesmo tempo desesperada atitude de optar pelo suicídio com a assistência da amiga para morrer dignamente, a exemplo do que nos ofereceu há pouco, em similar reflexão, o grande poeta e ensaísta Antonio Cicero, é o fio condutor de uma trama inteligente e sensível que mostra o poder de um ser humano consciente de sua humanidade e de seus limites. A jornalista de guerra, personagem de Tilda Swinton, que está morrendo, expõe toda a autonomia que como seres humanos estamos perdendo, ao desistirmos de sermos conscientes e autônomos nos nossos pensamentos e ações.
Na decisão de morrer por um ato de vontade própria e consciente, e não pelos meandros do sofrimento de um câncer incurável, ela reafirma a laicidade do pensamento, a pureza de ser quem ela pode ser por si só e, num enlace sensível de que somos seres gregários e que os outros deveriam existir para a solidariedade entre nós, ela clama pela presença da amiga porque, mesmo consciente e firme no seu propósito, precisa de alguém ao seu lado. O “se dar as mãos”, apelo tão presente nos momentos de grande vulnerabilidade, surge no filme no seu momento mais livre, o da libertação da dor e o alcance de uma morte digna por decisão raciocinada.
A personagem de Julianne Moore, penso que não por acaso uma escritora, é chamada para acompanhar a amiga na sua travessia, não como testemunha ou observadora, mas como presença humana solidária no momento de afirmação de um outro ser humano integral. Ao superar os seus medos expressos na sua obra literária e expressar uma solidariedade profundamente humana com sua amiga moribunda, a personagem de Moore vivencia algo que o mundo do neoliberalismo, da falsa moralidade, da religiosidade manipulada pelo poder está matando: nossa capacidade de sermos empáticos, isto é, de nos colocarmos no lugar do outro.
O filme se desenrola num clima de estranha e contundente delicadeza e não deixo de pensar que talvez seja uma narrativa que os antigos chamavam de “tapa com luva de pelica”, nesse caso no rosto de todos nós que assistimos entre acabrunhados e em desespero ao apocalipse ser construído em nossos quintais em um mundo em franca desagregação, assim como o corpo em decadência da personagem terminal. Mais uma vez Almodóvar nos alerta neste filme o que está em jogo e o quanto estamos sendo omissos ao não nos rebelarmos suficientemente para resgatar a dignidade da vida humana. Há, como entendo que sempre houve em sua filmografia, uma radicalidade ousada, mas verdadeira, profunda raiz.
Não é possível deixar de observar também as sutilezas de gênero que o filme transmite. Os dois únicos personagens masculinos, embora contrapostos — um é intelectual, teórico e militante contra a destruição climática e o outro é um policial fanático religioso, defensor da moralidade desses tempos tenebrosos —, são o elo frágil que representa ou o desânimo de um mundo que já se dá por perdido ou a obtusa e fascista atitude de se guiar por baixos instintos e pensamentos dogmáticos repetitivos. São os opostos das personagens mulheres, humanas nas suas dúvidas e angústias, mas firmes na defesa da vida e na construção da possibilidade de sairmos dessa. Num dos diálogos o homem afirma à amiga solidária: “Sempre te admirei pela sua capacidade de ser firme ao enfrentar os conflitos e harmonizá-los”. Isso diz muito do olhar feminino e me parece dizer mais do que muitos tratados a respeito do lugar central da mulher na difícil sociedade contemporânea.
Com o anúncio de tempos talvez ainda mais difíceis para a humanidade, da continuidade de guerras e dos novos fascismos, O quarto ao lado resgata uma possibilidade de olhar com coragem e autonomia o que somos e o que queremos.
Talvez estejamos a tempo de iniciar, neste novo ano, o movimento de retirar os barcos à deriva rumo à ilha da loucura, olhando criticamente o que escreveu Sebastian Brant em seu famoso texto O navio dos loucos, visão do mundo que vislumbrava em 1494, tempos de mutação como o nosso:
O mundo permanece em trevas profundas e persiste, cego, no pecado. As ruas estão cheias de loucos. Eles realizam sua loucura em todos os lugares, mas não querem que ninguém diga isso. É por isso que estudei o projeto de equipar os navios dos loucos para eles! ….É o Espelho dos Loucos no qual todos podem se reconhecer. Qualquer pessoa que olhe bem compreenderá que seria errado considerar-se um homem sábio, porque verá a sua verdadeira face. (tradução livre)
Que saibamos retomar o leme de nossas vidas coletivas. Saudemos as boas lutas de 2025!