O horror e nós

O perigo representado por lideranças da ultradireita antidemocrática, fanática, negacionista, mesclando populismo e o terror da violência que mata
Ilustração: Juliana Montenegro
01/03/2025

Com certo receio de estarem tropeçando em conceitos sociológicos e de teoria política, muitos amigos/as comentam que estão com a sensação de que estamos vivendo um tempo muito próximo da ascensão do nazismo na Alemanha dos anos 1930. Pessoas mais jovens me dizem que estão lendo tudo sobre o período da Segunda Guerra e seu contexto na tentativa de entender similaridades que proporcionem alguma compreensão da perversidade social, econômica e moral dos dias de hoje.

Se essa questão fosse apenas teórica, seria talvez mais um exercício que alcançaria relevância ou ostracismo no parque de nossas ideias sempre em conflito. O problema é que o conjunto de fatos objetivos no mundo nos empurra a sensação desagradável do famoso raciocínio popular: se tem cheiro de, se parece com, se age como, é! E essas figuras têm nome: são lideranças da ultradireita antidemocrática, fanática, falsificadora, negacionista, mesclando populismo com o terror da violência que golpeia e mata.

Sou daqueles que costumam olhar em primeiro lugar a história e seu tempo. E a primeira constatação é que estamos a uma ínfima medida de tempo histórico, apenas 92 anos e 10 dias passados entre a ascensão de Adolf Hitler ao poder como Chanceler da Alemanha e a posse como presidente dos EUA de um ícone dessa ultradireita atual, seu líder mundial inconteste, Donald Trump. Ambos empossados, em diferentes circunstâncias políticas e sociais, mas com o aval da maioria da população de seus países.

Instigado por esses dados, fui buscando, entre consultas a meus livros e memórias, alguns pontos que deram legitimidade ao nazismo na complexa sociedade alemã dos anos 1930. Nesse contexto é importante realçar, frente ao justo espanto que causa aos democratas o número expressivo de votos na ultradireita contemporânea, que a resistência ao totalitarismo nazista na Alemanha existiu, custou milhares de vidas, mas Hitler não ascendeu escondendo suas intenções, tanto pela grande circulação de seu livro Mein Kampf, quanto por suas ações objetivas, como a coletiva de imprensa de 1933 que anunciou a construção do primeiro campo de concentração nazista, o notório campo de Dachau. E depois dele, centenas foram construídos abertamente antes da Segunda Guerra. Como acontece hoje aqui e alhures, também houve concordância de parte da população alemã em ceder o poder a um homem com propostas genocidas, violentas e antidemocráticas.

Outros fatores apontados por historiadores também nos fazem refletir das proximidades metodológicas e das ideologias incrustradas em projetos de poder ontem e hoje.

Apesar das diferentes circunstâncias históricas, políticas, sociais e econômicas, um dos fatores que levaram o nazismo ao poder foi um forte sentimento nacionalista insuflado pela máquina do partido de Hitler. Derrotada como grande potência na Primeira Guerra, ferida pela perda de seu império, a Alemanha foi tomada por um nacionalismo radical, expansionista, supremacista, buscando retomar seu papel de liderança mundial. Seria forçar alguma semelhança associar essa aspiração do passado com o imperativo MAGA [Make America Great Again] contemporâneo?

Igualmente com a devida cautela teórica, não há como não pensar na similaridade do ódio a civilizações e etnias praticadas pelo nazismo, que classificava povos como “raças inferiores” capazes de todas as barbáries e usurpações, e o comportamento das lideranças da ultradireita contemporânea, seja o atual genocídio em Gaza ou a fúria contra os imigrantes nos EUA, classificados como perigosos criminosos e tratados como tal.

Mas, como sempre ocorre na história, as primeiras manifestações de movimentos e lideranças profundamente antidemocráticas que aspiram o totalitarismo começam com o expresso ódio à cultura e ao conhecimento, materializado em ações objetivas que procuram destruí-los.

Em 10 de maio de 1933, sob o comando do diretório nacional de estudantes, então simpatizantes do nazismo, a Bebelplatz de Berlim foi palco de uma gigantesca queima de livros de autores/as críticos ao regime ou considerados fora dos padrões impostos pela ideologia hitlerista. A fogueira que queimou Mann, Freud, Zweig, entre muitos outros, foi acesa em dezenas de cidades do país, afugentando ou eliminando centenas de intelectuais, cientistas, escritores/as e professores/as. Tudo em nome de uma “purificação radical de elementos estranhos que possam alienar a cultura alemã”, conforme justificava o poeta nazista Hanns Johst, sob a complacência de parte da opinião pública, de parte da intelectualidade, de editoras e de países que viam a barbárie como fanatismo estudantil controlável.

Compartilho esses pensamentos incipientes após ser provocado por duas notícias aterradoras, que só tornaram piores as informações que nos chegam vez ou outra nos últimos anos sobre as tentativas de eliminar autores e livros nas escolas e bibliotecas brasileiras, provocadas por arautos da ignorância e da violência censória antidemocrática de triste memória. Como exemplo de muitos, lembro matéria de O Globo, de 20/6/24, que aponta tentativas de censura a Ziraldo, Jeferson Tenório, Marçal Aquino, Machado de Assis, Luiz Puntel e Flávia Martins.

O colunista Jamil Chade, que observa os primeiros movimentos do novo presidente norte-americano, em sua coluna no UOL, de 10/2/25, denuncia que segundo a Pen American houve banimento de cerca de 10 mil títulos de livros nas bibliotecas e escolas norte-americanas entre 2023-2024, todos em estados e municípios comandados por republicanos. Além disso, desde 2021 a mesma entidade contabilizou 16 mil títulos proibidos em escolas, número somente visto na época da guerra fria dos anos 1950. E, ainda, que a ordem agora é federal:

A decisão foi tomada como forma de cumprir as ordens executivas de Trump que estabeleceram a “defesa da mulher contra ideologias extremistas e restaurar a verdade biológica”.

A batalha feroz que a ultradireita trava contra a equidade em todos os seus aspectos não se restringe apenas aos livros literários e de instrução escolar mas, também, repetindo períodos de horror na história, procura destruir o mundo da pesquisa e da ciência nas universidades. De um colega de importante universidade brasileira, recebi um comunicado informando que a fúria censória agora em vigor nos EUA já começa a atingir a cooperação científica internacional. Um grupo de pesquisadores brasileiros, em trabalho conjunto com centros de pesquisas internacionais, recebeu um comunicado da agência norte-americana de financiamento à pesquisa, Fullbright, que o projeto havia sido “censurado” e que era preciso readequá-lo, retirando palavras e temas agora banidos da academia norte-americana. Pasmem, são elas: direitos humanos; opressões de gênero, classe e raça; crise dos princípios democráticos; emancipação social; sistemas de opressão; interações transculturais; promoção da justiça social; ⁠crescimento da população encarcerada e suas implicações racistas; crescimento das desigualdades; crise ecológica e crescimento de práticas de vigilância e segurança que violam direitos civis e políticos fundamentais; entre outras de igual teor reacionário e negacionista.

Se já não bastasse, o portal Haaretz | Israel News, em 10/2/25, noticiou mais uma escalada contra os livros, agora a mando do genocida Netanyahu:

A polícia de Israel invadiu duas livrarias icônicas em Jerusalém Oriental no domingo, alegando que os livros vendidos lá eram incitadores, mas depois prendeu os proprietários sob suspeita de perturbação da paz.

E nós? Alguma dúvida que é preciso se contrapor a isso tudo? Antes que os arremedos perigosos do nazismo que teima em ressurgir consolidem seu poder é preciso recordar e agir no presente. A palavra, o livro, a fabulação e a ciência são armas potentes contra a barbárie. A ultradireita sabe disto e age com pressa e precisão para destruí-los. Até quando os democratas, os socialistas e humanistas continuarão a pensar que a defesa desse patrimônio cultural e a formação de novos escritores/as e leitores/as é algo que pode ser adiado porque não é urgente?

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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