A questĂŁo Ă© quase inevitável nos incontáveis debates que fiz por todo o paĂs e no exterior sobre polĂticas e planos de livro, leitura, literatura e bibliotecas: por que há necessidade de leis para se formar um paĂs de leitores? Em um mundo tĂŁo caĂłtico e desobediente Ă s leis, por que imprimir tanta energia Ă construção de legislações que sĂŁo quase sempre desobedecidas pelas autoridades nos muitos governos arbitrários da AmĂ©rica Latina?
A pergunta Ă© pertinente, assim como a resposta nĂŁo deve ser genĂ©rica e apoiada apenas nos pressupostos gerais do convĂvio civilizado na polis que deve ser garantido por normas cidadĂŁs de participação nos bens pĂşblicos, conforme nos ensinam os grandes tratados de filosofia e ciĂŞncia polĂtica que instituĂram a ideia de Estado e de Sociedade modernos.
Prefiro encarar o desafio da resposta pelo pragmatismo que se exige dos militantes pela leitura e escrita que fazem essa pergunta estratĂ©gica. Afinal, deles se espera trabalho contĂnuo, respostas imediatas, assim como soluções rápidas para o analfabetismo funcional, para a falta de recursos generalizados para o setor, para a modernização de acervos e atendimento nas bibliotecas pĂşblicas, escolares e comunitárias, para a ausĂŞncia de acesso Ă internet gratuita e para todos. Vejo angĂşstia em muitos dos valorosos formadores e formadoras de leitores que, Ă s vezes, se perguntam por que devemos lutar tanto para que a leitura e a escrita sejam protagonistas da luta polĂtica e a bandeira central dessa luta seja a das polĂticas pĂşblicas.
Esses questionamentos se ampliaram apĂłs a promulgação da Lei 13.696/2018, que instituiu a PolĂtica Nacional de Leitura e Escrita – PNLE e que criou pela primeira vez a obrigatoriedade de planos decenais de fomento Ă formação de leitores, reconhecendo o direito Ă leitura para todos e todas. A razĂŁo de um questionamento mais agudo Ă© porque, conquistada a lei apĂłs anos Ă fio de dura luta polĂtica, ela está sendo solenemente ignorada pelo internacionalmente conhecido presidente destruidor da cultura, da educação, da saĂşde, entre tantos outros malfeitos.
Antes de responder diretamente, lembro aos interlocutores que Ă© importante refletir porque temos tantas dificuldades em estabelecer um debate com os poderes executivos e legislativos, em todos os nĂveis da federação, na construção dessas leis para o livro e a leitura, assim como, apĂłs estabelecidas, termos que seguir lutando para que essas mesmas leis sejam implementadas.
NĂŁo seriam essas leis peças fundamentais no combate Ă desigualdade estrutural a qual está submetido o povo brasileiro há sĂ©culos? O quanto de resistĂŞncia existe, nos cĂrculos polĂticos e burocráticos dos governos federal, estaduais e municipais, aos avanços e aos caminhos possĂveis que constroem novos leitores? No paĂs campeĂŁo da desigualdade, que acumula recordes histĂłricos de direitos negados em mĂşltiplas áreas, nĂŁo podemos ser ingĂŞnuos e concluir que as dificuldades enfrentadas sĂŁo apenas de incompreensĂŁo e de falta de prioridades com a cultura e a educação, alicerces do letramento. A barreira da exclusĂŁo Ă© real, defende interesses seculares e se materializa fortemente quando se reivindica, por imposição legal, a escala de alcance de programas e ações prĂł-leitura que somente a polĂtica pĂşblica pode atingir, chegando a milhões e nĂŁo apenas a centenas ou a milhares.
Essa Ăşltima reflexĂŁo Ă© importante para entendermos o contexto da resposta Ă pergunta do porquĂŞ devemos dispensar esforços por leis nacionais, estaduais e municipais que garantam o acesso e o direito Ă leitura e Ă escrita. O fundamento Ă© que, antes de tudo, a leitura Ă© um instrumento de emancipação, de liberdade, de autonomia intelectual dos seres humanos e, exatamente por isso, Ă© um direito inalienável e uma conquista civilizatĂłria que nĂŁo pode mais ser negado, mas que nĂŁo será conquistado sem luta polĂtica.
A resposta pragmática que procuro dar aos interlocutores Ă© que os poderes pĂşblicos sĂł agem verdadeiramente e deixam de fazer proselitismo polĂtico quando executam programas e ações baseados em dois procedimentos visĂveis e identificáveis: executam sob autorização de marcos legais que impõem a ação pĂşblica; destinam recursos financeiros e humanos Ă execução das ações.
Sem esses dois procedimentos — marcos legais que determinam e dinheiro e pessoal para execução —, toda ação governamental Ă© retĂłrica e redunda em lugar nenhum, paralisada no meio do caminho. Esse raciocĂnio serve para os programas de livro e leitura, e para pontes, estradas, hospitais, escolas e todo o restante das ações de governo.
Ter uma legislação adequada Ă© necessidade inalienável do processo de ação efetiva do Estado democrático. Me dei conta disso no primeiro semestre de 2006, quando recebi dos ministros da Cultura e da Educação o convite para assumir a coordenação do PNLL, recĂ©m apresentado publicamente com grandes dĂşvidas das equipes de governo em fevereiro daquele ano. Em maio de 2006 nĂŁo havia nenhum marco legal que sustentasse o que foi apresentado publicamente, estávamos a quilĂ´metros de qualquer ação polĂtica consequente. Minha exigĂŞncia para aceitar o encargo, com a concordância das equipes ministeriais, foi dar legalidade ao ato polĂtico legĂtimo de se construir um plano nacional de leitura, dando consequĂŞncia Ă s centenas de ações prĂł leitura que vinham sendo publicitadas paĂs afora desde 2005, com o Ano Ibero-americano da Leitura, o Vivaleitura. Havia muito barulho bom e animador, mas nada de sĂłlido e viável na perspectiva de uma ação pĂşblica permanente do Estado brasileiro. Neste contexto, foram publicadas em agosto as primeiras duas portarias interministeriais que instituĂram o PNLL e sua primeira estrutura diretiva, inclusive o cargo (pro bono) de Secretário Executivo que tive a honra de exercer atĂ© março de 2011.
Imediatamente apĂłs as portarias, e com a consolidação do texto do PNLL em 19 de dezembro de 2006, constatamos que seria preciso ampliar em muito a base legal para que o MinC e o MEC pudessem ouvir o que solicitava o Plano e agir em consequĂŞncia com programas e ações pĂşblicas que promoveriam sob a estratĂ©gia do PNLL. As portarias ministeriais sĂŁo o primeiro degrau da institucionalidade no Estado e a enormidade da tarefa de se realizar um programa consistente de letramento no paĂs necessitava muito mais do que aquele marco legal. Junto com o avanço da ideia e de programas para se formar um paĂs de leitores que o PNLL materializou, seguiu-se a discussĂŁo que amadurecia a necessidade de uma PolĂtica de Estado com essa finalidade.
A prĂłpria ideia de PolĂtica de Estado evidenciou a necessidade e a verdadeira dimensĂŁo da lei que se passou a almejar: fazer o paĂs sair do ciclo permanente e perverso de programas e ações de formação de leitores exitosos que nĂŁo duravam mais que um perĂodo governamental. TĂpico de paĂses democraticamente atrasados, a chaga da descontinuidade que atingiu e ainda atinge tantos programas bons e fundamentais no paĂs precisava e ainda precisa ser estancado. Na área do livro e da leitura basta lembrar os Ăşltimos 30 anos seguidamente descontinuados, desde a implantação do PROLER e, mais recentemente, do programa Mais Cultura, que viabilizou milhares de ações de formação de leitores e bibliotecas motivados pelo PNLL no âmbito do MinC. Descontinuidade que se repetiu e se repete na educação, hoje com maior intensidade no conturbado MEC.
NĂŁo foi sem razĂŁo, e nem por acaso, que os esforços, desde o inĂcio dos atuais golpes Ă democracia em 2016, se voltaram para instituir a Lei 13.696/2018 — PNLE, que explicita em suas duas primeiras diretrizes a universalização do direito ao acesso ao livro, Ă leitura, Ă escrita, Ă literatura e Ă s bibliotecas e reconhece a leitura e a escrita como um direito de todos os brasileiros e condição necessária ao exercĂcio pleno da cidadania. Nossa primeira PolĂtica de Estado, permanente, para formar leitores.
Neste 2022 voltarei a ela e às suas múltiplas dimensões.