A velocidade e a intensidade opressiva dos sobressaltos políticos, econômicos e culturais diários que estamos vivendo buscam, com a ânsia do esperado encontro, o fundo do poço desse sofrido período histórico. Afinal, diz o dito popular, quando chegamos a esse estágio final de decadência, só poderemos nos levantar, ressurgir, reconstruir, alçar voos.
Nesse momento que escrevo a coluna, a leitura dos principais acontecimentos da semana mostra que nem a vertiginosa velocidade da queda é suficiente para enxergarmos a escuridão do fundo que poderia nos levar novamente às alturas. No contexto das milhares de pessoas que saíram às ruas vestidas com as cores nacionais no dia de comemorações da Independência, encontramos, mais uma vez, a síntese do que há de pior em muitos dos nossos conterrâneos: a enorme dificuldade cognitiva, marcada pela intransponível dificuldade em ler e compreender criticamente o real; a ignorância de conceitos básicos da cidadania e dos direitos e deveres que regem a civilidade na vida em comunidade; o imenso atraso cultural e educacional marcado pelo colonialismo imbricado sobre aderência a pensamentos e ideologias regressivas e autoritárias.
Assistimos, atônitos, a declarações, palavras de ordem, entrevistas aos meios de comunicação que mais parecem pertencer ao mundo do nonsense e da perversão imposta pelo ódio à humanidade, do que a pessoas que convivem conosco em nossas famílias e que cruzam as ruas do país identificados como seres humanos. O teor e a ordem de grandeza desses infames mundos paralelos, profusamente difundidos pelas redes sociais, estão explícitos num apertar de botões, corroborando esta triste constatação.
Tristes e difíceis tempos que vão se caracterizando pelo ressuscitar de fantasmas autoritários pretensamente enterrados, como, por exemplo, as ideologias fascistas e nazistas. Se o fenômeno não é apenas brasileiro, as pesquisas recentes sobre o ressurgimento das ideias e movimentos neonazistas no Brasil são mais que preocupante, e deveriam acender todas as luzes de alerta nos verdadeiros democratas. Em matéria na Folha de S. Paulo no dia 15/08/2021, a jornalista Fernanda Mena, baseada na pesquisa da antropóloga Adriana Dias, revela que houve um crescimento exponencial de “células neonazistas” no Brasil: de 75 agrupamentos em 2015 para 530 em maio/2021. Outro dado da reportagem revela a explosão de conteúdo com apologias ao nazismo nas redes: de 1.282 episódios em 2015, saltou-se para 9.004 em 2020, mais de 600% de aumento. Ainda no mundo virtual, foram removidas 329 URL/endereços de conteúdo nazista em 2015 contra 1.659 remoções em 2020. É sempre bom lembrar que são atividades criminosas, ilegais e que atentam contra a democracia e a Constituição. E elas estão em crescimento. E todo esse movimento de ultradireita ganha legitimidade e visibilidade na “esteira da ascensão do discurso sectário do hoje presidente Jair Bolsonaro”, como bem assinala a jornalista, e como pudemos atestar nas ações e verbalizações do presidente e de seus militantes que foram às ruas no último 7 de setembro.
Quando afirmamos ou ouvimos que a política hoje no Brasil é alimentada pelo discurso do ódio, é preciso acrescentar que este não nasce de um processo natural, numa leitura ao inverso da filosofia de Rousseau que entendia que o homem nasce naturalmente bom. O brasileiro, assim como todos os seres humanos, não tem o mal intrincado no espírito, mas seu comportamento como cidadão é fruto de uma história de iniquidades e explorações selvagens e extratoras, brutalizada pela marca do escravismo estrutural que deformou nossa sociedade e seus valores, dividindo seres humanos pelo ódio de classe, de cor da pele e etnia, de sua condição sexual e econômica, somados à permanente exclusão do seu direito à leitura e à educação. A república das milícias, retratada no livro de Bruno Paes Manso, não seria possível sem os nossos 500 anos de história.
E como sair desse tenebroso e injusto mundo sem termos a firme convicção de que somente políticas públicas vigorosas, suprapartidárias e de Estado, pactuadas com a Sociedade Civil, são o único caminho do resgate deste interminável “fundo do poço” no qual nos encontramos?
Será que conseguiremos compreender a real dimensão do exemplo que estamos tendo com a vacinação em massa nesta pandemia mortal? Depois de quase 600 mil vidas ceifadas pela Covid-19, do descaso genocida da política pública de saúde, somente agora, com a vacina, o país realiza uma ação imposta pela força da resistência cidadã ao desgoverno e damos os primeiros passos para sair da crise sanitária. Se o fato sanitário é evidente, é preciso compreender que a política pública em escala, agora aplicada e sintetizada pelo SUS e pelos esforços dos institutos de pesquisa científica, é o único instrumento para enfrentar uma questão desta natureza e dimensão, com potencial para arrasar o país e sua população.
Ora, o mesmo raciocínio se aplica a todas as questões igualmente estratégicas para a necessária reconstrução nacional que se impõe após o desastre humanitário e social que estamos sendo submetidos desde o golpe que depôs a presidente constitucionalmente eleita, e que culminou com a eleição e preservação até hoje do ser indizível que ocupa a presidência.
Recuperar a Política Pública nas áreas imprescindíveis é a principal missão da sociedade brasileira e seus representantes. O país já demonstrou que pode fazer isso em várias áreas.
No âmbito da formação de leitores, do direito à leitura para todos, já construímos o alicerce legal com a Lei 13.696/2018 da Política Nacional de Leitura e Escrita. Igualmente, já demos demonstração recente que investimentos públicos baseados em um Plano Nacional de Livro e Leitura é capaz de aumentar exponencialmente os investimentos que saltaram da média histórica, apenas no âmbito da Cultura, de 6 milhões de reais/ano até 2006 para 90 milhões/ano no período de 2008 a 2010 (Fonte: relatório do MinC/DLLLB – Balanço das ações de livro e leitura – 2003/2010).
Os dados atuais mostram exatamente o oposto. Matéria recente do jornal O Globo demonstra que o orçamento da área cultural caiu pela metade nos últimos dez anos. Mesmo com a crise econômica de 2011, o extinto MinC tinha um orçamento de R$ 3,33 bilhões, hoje transformados em R$ 1,77 bilhão. E ainda, conforme o mesmo jornal, o desgoverno não consegue executar o diminuído orçamento: 30% da verba em 2020 não foi gasta e em 2021, faltando quatro meses para o final do ano, apenas 36,5% dos recursos disponíveis foram empenhados.
É preciso comprometer essas prioridades nas propostas dos candidatos a nos governar nas eleições de 2022. As barbáries que convivemos na nossa história e no presente acachapante só poderão ser superadas se começarmos a investir em Políticas Públicas de Estado que priorizem a Educação, a Cultura, as Ciências e as Humanidades, formadoras de consciências cidadãs. O Brasil necessita ser recriado e isso só será possível quando superarmos as políticas economicistas e subalternas aos interesses de oligarquias financeiras e políticas, que só servem à paralisia do desenvolvimento sustentável e equânime que todos queremos e que é possível conquistar.