A Royal Letters Patent que a Universidade de Cambridge (UK) recebeu em 1534, autorizando-a a editar e imprimir livros, a consagrou como a editora universitária mais antiga do Ocidente e, ao mesmo tempo, forjou um modelo de publicação acadêmica que se consagrou como edição científica. Em síntese, este modelo conceitua a publicação dos resultados das pesquisas científicas como atividade finalística das universidades que se constituem em centros de excelência em educação e pesquisa. A editora da universidade tornava-se parte integrante de uma academia humanística e inovadora, forjada nos novos ares da Modernidade do século 16, integrando-a ao renascimento das ciências, das culturas e das artes que fundaram a era moderna e influenciaram a contemporânea. Pesquisar e difundir o conhecimento para a sociedade que abriga e provê as universidades é parte constitutiva das missões acadêmicas até hoje.
Se os séculos 15 e 16 foram eras de transformação na técnica, na forma e no conteúdo das publicações, gerando a indústria editorial que percorreu os últimos cinco séculos, é indubitável que o século 21 é protagonista de uma nova era de transformações nesse universo da palavra que transmite o conhecimento, o literário, o poético.
Minha geração de editores é testemunha ocular das transformações do modo de fazer e distribuir conteúdos editoriais desde a virada do século. O congresso mundial de editores realizado em Buenos Aires em 2000, vislumbrou com clareza a mudança de era que se apresentava: o livro eletrônico, as novas possibilidades das escrituras e das autorias que modificariam o conceito de livro, as livrarias virtuais e a distribuição de conteúdos via web, a consolidação do processo de entrada de capitais financeiros no comando de conglomerados editoriais mundiais, a entrada de novos protagonistas na secular indústria, representado pelas companhias de tecnologias com presença hegemônica no mundo tech e que criaram alternativas para produzir e distribuir, influindo fortemente no setor gráfico editorial.
Os últimos 20 anos consolidaram o caminho anunciado, e da maneira como a história sempre acontece: nem tudo foi conforme os vaticínios e os catastrofistas, nem tudo foi conservado intacto como gostariam os conservadores. Penso que podemos afirmar duas coisas fundamentais após essas duas décadas:
1. Que a transformação ocorrida na produção e na industrialização das escrituras, e que Roger Chartier chama de “textualidade eletrônica”, não tem a mesma equivalência do livro tradicional por inúmeras razões que o próprio Chartier explicita em suas argumentações. O novo mundo da virtualidade, ao transformar a escrita, a forma de editar e a forma de ler, não substituiu o livro impresso pelo livro digital, mas criou um outro registro de transmissão da palavra cujos desdobramentos ainda estão em aberto.
2.Todos os indicadores demonstram que estamos apenas no início dessas transformações tecnológicas e de seus aparatos eletrônicos que envolvem toda a cadeia criativa, produtiva e distributiva do livro e da leitura.
É uma realidade inexorável, ditada pela nova economia mundial que detém os investimentos mais importantes na produção de informação, tendências e satisfação de uma era dominada pelo consumo indiscriminado de bens os mais inusitados, postos em rede e que deu materialidade mercantil ao velho conceito de globalização pela ação de cinco grandes empresas de tecnologia e inovação que apresentam dominância no mercado econômico, as chamadas Big Techs.
A lógica formadora dos quadros tecnológicos e pensadores desta nova era da economia prescindiu também dos valores e dos ideais comuns construídos na modernidade e baseados em conceitos como Estado, bem comum, bem-estar social, entre outros. Hoje, a inovação e as tecnologias voltam-se para incrementar e facilitar o consumo e a lógica dos mercados. Não é sem razão que seus centros de desenvolvimento tecnológico se concentram em grandes mercados e não em regiões com baixo índice de consumo. Vejamos o exemplo da Amazon: nos EUA, ela mantém 15 centros de desenvolvimento de software; no Canadá, 3, somando 18 na América do Norte. Em contraste, na América do Sul há somente 1, em São Paulo, para todo o continente.
A pergunta que faço é: qual a chance que a indústria editorial e do livro tradicional, aquele da reflexão, da fruição literária e artística, do que forma consciências por intermédio da excelência da pesquisa e da transmissão verdadeira do conhecimento, tem perante este “novo mundo” se apenas entrar nele como mais uma peça desse jogo de consumo ditado por algoritmos?
A questão é complexa e exige uma longa reflexão. No entanto, abordo aqui brevemente, quase como uma provocação, o mundo que convivi e ajudei a construir como editor universitário nos últimos 40 anos: a edição universitária.
Apesar de todas as tentativas em descaracterizar sua identidade como instituição social, que possui autonomia, compromisso social e capacidade de formação integral voltada para a busca da universalidade que lhe permita responder, sem compromissos corporativos, as questões contraditórias do social e do histórico, as melhores universidades contemporâneas continuam resilientes às abordagens que querem confiná-las como organização empresarial. Ao contrário de objetivos mercantis, muitas Universidades atuam com autonomia imposta por sua racionalidade que tem compromisso apenas com o conhecimento autônomo ao mercado e às demais instituições públicas. Seu compromisso com a ciência trabalha com o pensamento e a linguagem, fomenta a interrogação e busca respostas transformadoras. Nas palavras de Marilena Chauí, a Universidade não deveria ser uma “força produtiva direta”, como a querem enquadrar.
Como difundir tudo isto para a sociedade? Qual o esforço necessário para superar o insuficiente modelo vigente inaugurado há séculos e ir além da vida de escaramuças episódicas em feiras e eventos para chegar ao leitor?
Este esforço não caberia somente às editoras universitárias. É a própria Universidade que teria que se rever como produtora e publicadora de conteúdos. Se ela é, de fato, um dínamo que gera conhecimento autônomo e socialmente necessário, toda a informação gerada deveria ser trabalhada de forma unificada, integrando todos os seus canais de comunicação com a sociedade em uma nova instituição, uma editora multidimensional.
Para além da editora, mídias multidiversas, multiplataformas, com desenvolvimentos harmonicamente integrados e planejados para transmitir, ininterrupta e diversamente, todos os conteúdos científicos, acadêmicos, culturais, artísticos produzidos pela academia. Isso significa que os canais comunicantes — editora, publicações periódicas, imprensa escrita, televisiva e radiofônica, redes vinculadas à internet, serviços bibliotecários, repositórios, equipamentos culturais — deveriam integrar-se em uma única operação institucional de transmissão do conhecimento universitário, eliminando as fragmentações que se diluem na desigual competição dos nossos dias.
Frente à magnitude avassaladora das corporações que dominam cada vez mais um mercado editorial que já foi autônomo e livre, poderá caber mais uma vez, às universidades, como há cinco séculos, a ousadia de um novo caminho no qual a editora acadêmica amplia-se enormemente para se tornar, com massa crítica unificada em um poderoso veículo de comunicação integrado e multidimensional, uma resposta aos simulacros de conhecimento, às fake news, às simplificações e aos negacionismos que atentam contra nossa humanidade e até contra nossa presença no planeta.
Se souber dar um passo e entender que sua ação comunicativa no mundo de hoje é tão importante quanto o conhecimento que ela gere, as universidades comprometidas com a causa pública contemplarão também uma de suas mais sublimes e necessárias missões: educar, formar integralmente o cidadão ao longo da vida. Sendo um especialista em sua área científica, cada professor será também um autor e um formador polivalente de cidadania.